Ancestralidade no jornalismo

Diversa

Ancestralidade no jornalismo

02 de Julho de 2020

O jornalismo ganha força quando contamos as nossas histórias e de nossos antepassados

Quem acompanha a Diversa já sabe que, desde o início deste ano, a Énois não tem mais Escola de Jornalismo e funciona como um laboratório de jornalismo que atua em 3 eixos. Um deles é o de jornalismo local, que trabalha pela formação e desenvolvimento de jornalistas locais, hiperlocais e periféricos.

Entendemos que só dá para construir para fora se também desenvolvermos dentro. Sem a EJ, a Énois virou na verdade uma organização que estuda e questiona internamente pra poder levar isso pra fora. Fazemos formações coletivas, leituras, discussões e reflexões sobre o que vivemos e aprendemos. Como esta que vamos dividir agora.

Em maio refletimos sobre ancestralidade nos nossos encontros semanais de equipe e no eixo de Jornalismo Local. Entendemos que tem tudo a ver com comunicação porque um olhar sensível e atento para nossa história individual e social nos permite retratar a sociedade de forma mais completa e diversa.

Olhar para o que sabemos sobre nós, de onde viemos e quem queremos ser é crucial. Nos permite compreender os buracos de representatividade do jornalismo eurocentrado, patriarcal e racista, que nos confunde quando tratamos como sinônimo de realidade. Uma realidade que nos deixa de fora.

O primeiro livro lido pela equipe de Jornalismo Local foi “Quando me descobri negra”, da jornalista Bianca Santana. Curto e forte, narra pílulas da vida de Bianca de forma poética, (auto)crítica e espinhosa, mostrando a descoberta individual do racismo profundo e estrutural brasileiro.

A conversa da equipe sobre o livro trouxe reflexões sobre nós e o jornalismo. A Énois parou e se envolveu para partilhar o que na correria do dia a dia não falamos e às vezes nem enxergamos. E nos vimos – ainda que virtualmente, porque para garantir nossa segurança estamos seguindo com os trabalhos em casa.

Glória Maria, residente da Énois e co-fundadora da Batalha de Paraisópolis, lá na Zona Sul de São Paulo, escreve a segunda parte desta Diversa, contando como foi a discussão.

O gráfico nos dá um panorama preocupante do jornalismo no Brasil: grande parte das redações são ocupadas por brancos. 

Para mim, me ligar ao jornalismo foi um processo de desconstrução de pensamentos e práticas. De entender que jornalismo é construído a partir de uma visão, uma perspectiva, e que eu ocupo um lugar social e racial diferente e enxergo o que esse jornalismo do centro não vê.

O primeiro curso de jornalismo que fiz antes da Escola de Jornalismo da Énois foi o Você Repórter da Periferia, projeto do Desenrola e Não Me Enrola, no Jardim Ângela, na zona Sul de São Paulo. Ali enxerguei a comunicação com outro foco.

Até aí eu pensava que comunicação era só o jornal que passava nas grandes redes de TV. Eu e meu cotidiano não estávamos lá. Isso tornou mais difícil e doloroso meu processo de autoconhecimento, de afirmação da minha identidade.

Quando me inscrevi no curso e passei fiquei muito alegre porque eu já gostava de escrever umas pequenas críticas desde o oitavo ano. O curso começou quando eu estava começando a entender que eu também podia ser jornalista, que eu também podia comunicar meu território. Isso mudaria tudo em mim. Está mudando a sociedade.

Mas o caminho é longo. Como vem sendo o meu.

Em uma manhã de sábado, ia animada para o curso, subindo as ladeiras imensas de Paraisópolis em direção ao Morumbi, um dos bairros mais caros da zona sul. Presenciando o choque de classes. E raças.

Eu estava em transição, tinha acabado de tirar as tranças e me sentia estranha e insegura no processo de encontrar o meu eu como mulher negra. No topo de uma ladeira cansativa, fiquei esperando o sinal fechar. Ali ouvi, de dois homens brancos que passeavam com seus cachorros do outro lado da rua: “Ei!!! Vai lavar e pentear esse cabelo! Parece muito sujo, hein!”.

Os dois se olharam e riram. Eu continuei o meu caminho em direção ao ponto de ônibus. Segui em silêncio, chocada, insegura pelo meu cabelo, com vergonha…

Só no no ônibus me toquei que podia ter falado, rebatido, xingado aqueles homens para me defender! Mas na hora não saiu nada. O choque foi maior do que a reação de falar.

Ler o livro da Bianca Santana me trouxe lembranças e sensações do racismo que nos atravessa. O racismo que muitas vezes estava “disfarçado”, que eu disfarçava e abafava. E não compreendia o quanto é prejudicial e o quanto nos cala e anestesia viver essa violência.

Pensar em ancestralidade me remete a querer entender de quem eu vim, pra onde eu vou, para o que eu vim. Nos costumes, ditados e aprendizados que carregamos. Os meus costumes vêm de uma família negra e nordestina. E o seu?

O jornalismo ganha força quando contamos as nossas histórias e de nossos antepassados a partir dos territórios físicos e simbólicos em que vivemos.

NO RADAR

 

Paraisópolis controla melhor o coronavirus do que a cidade de São Paulo, mostra a Galileu. A comunidade tem iniciativas sociais como os “presidentes de rua”, uma pessoa de cada rua responsável por monitorar e ajudar as outras, ambulâncias locais e combate à desinformação

 A Agência Pública lança projeto de investigação participativa: Histórias que Contam. Leitores e leitoras de todas as partes do país são convidados a contar histórias de familiares e conhecidos que morreram de Covid-19. Os relatos serão recebidos através deste questionário 👉 https://agen.pub/participe

 Em 20 anos irei comandar sua redação, é um texto de Aiyana Ishmael, estagiária de mídia digital na MediaWise, sobre a importância da mentoria e do comprometimento de jornalistas brancos. via Poynter

  Dois estudos que ajudam as redações a reconhecer o racismo, um da Pew Research Center e outro da Knight Foundation. via NiemanLab

 Jornalismo precisa de menos supremacia branca, não de mais diversidade, aponta a FAIR, organização por justiça e acuracidade na reportagem, em artigo sobre o racismo da imprensa americana que, nas últimas semanas, gerou defesa dos prédios em editorial e demissão de uma repórter negra que comparou os estragos das manifestações à sujeira após shows. O artigo cita o relatório Kerner de 1968, que investigava os protestos raciais, fez recomendações para o futuro dos EUA e indiciou a mídia porque “relata e escreve do ponto de vista do mundo de um homem branco”. E dá o caminho: a imprensa tem de parar de considerar erro o que é uma falha sistêmica.

 

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