Diversa

Quando a humanidade é o melhor método de relação com as fontes

 

09 de outubro de 2021

 

Embora possa soar antiético para uma jornalista ajudar sua fonte, me soou como o melhor a fazer como ser humano.

 

Natali Carvalho, repórter do programa Sala de Redação da Énois

Olá, tudo bem? Sou Natali Carvalho, repórter do Sala de Redação. Antes de mais nada, espero que esse texto seja alívio para quem vai ler, ou ao menos sirva para pensarmos um pouco sobre humanidade. O que eu vou contar aconteceu já tem um tempo, mesmo assim, me toca profundamente todos os dias. 

Eu entrei em uma grande redação do Ceará como repórter, graças ao projeto Diversidade nas Redações idealizado pela Énois, projeto esse que conseguiu reunir diversos jornalistas não brancos em jornais do País. Antes disso, eu fui Novo Talento no Jornal O POVO e estagiária no Sistema Jangadeiro. Por si só, essa já é uma grande ambição. Foi a primeira vez que pude ocupar o espaço dos meus sonhos, com o cargo que eu tanto almejava ocupar. Lembro perfeitamente o quão emocionada fiquei quando pude me apresentar a uma fonte: prazer, sou Natali Carvalho, repórter.  

Mas não passou muito tempo, a redação decidiu sair do programa da Énois. Eu, que estava contratada lá através do Diversidade nas Redações, me vi demitida. Foi dolorido. Depois de tanta dificuldade para concluir meus estudos e chegar até este lugar, me senti perdida. 

Fui até a praça da Imprensa, na cidade de Fortaleza. Fazia muito calor, como sempre faz por aqui. E ansiosa, suava ainda mais, tentando assimilar muito da minha dor. Foi quando vi uma mulher com uma placa feita de papelão, que dizia: “Sou uma mãe. Preciso de ajuda. Aceito qualquer coisa”. 

Não foi a primeira vez que vi aquilo, principalmente em Fortaleza. Mas talvez tenha sido a primeira vez que refleti verdadeiramente sobre a dor da incerteza, não de uma forma romantizada. Sem emprego, sem dinheiro, o que vai ser de mim? Em uma pandemia. Mas o que está sendo delas? Dessas mulheres aos montes que carregam placas implorando – e se humilhando – por uma ajuda financeira. 

Depois deste dia, demorei mas percebi que não havia deixado de ser jornalista por ter sido demitida de uma grande redação do Ceará. Não pensei duas vezes em retornar àquela mesma praça. Eu imaginava que teria a empatia necessária para produção daquela pauta sobre mães que se tornaram pedintes na pandemia. Já vivi dificuldades na minha vida. Sofri racismo, fui abusada. Acreditava que ter experimentado algumas das dores que aquelas mulheres também sentem facilitaria meu trabalho. Mas não é tão simples na prática. 

Na universidade de jornalismo, aprendemos a nomear as pessoas que são protagonistas das histórias que relatamos como “personagens”. Uma forma bastante hedionda, penso, para denominar cada uma daquelas vidas. De “personagens”, aprendi a chamá-las pelos nomes. Antônia Adriana Teixeira, Natalia Nunes, Maria Ester, Claudiana Monteiro e Silvia Fernandes. Todas com sobrenomes e filhos. Nas ruas da capital cearense, as acompanhei enquanto caminhavam debaixo do sol em busca de alimentos para suas famílias. 

Nem todos os dias elas têm comida para os filhos. Uma delas me contou que teve que dividir um ovo para cinco. Outras relataram fome. Lembro que todas me falaram da ideia de construir um fogão a lenha em suas casas para conseguir fazer o alimento para suas famílias, mesmo que cada um morasse em locais diferentes. Vivem sob o medo do corte de energia e sob o medo do despejo, caso não consigam pagar as contas atrasadas de seus aluguéis.

Eu achei que por ser de família humilde, de ter vivido com o fato de termos no máximo duas a três refeições no dia, seria o bastante para compreender a fome que elas passam. Achei que não ter luxo seria o bastante para entender essas mulheres. Achei que ter convivido com o medo de minha mãe de não saber como sustentar os filhos depois de se separar o do meu pai, seria o bastante para relatar aquela realidade da maneira que pensava ser justa. Pensei que o meu medo de ter que voltar para o interior, caso não conseguisse um emprego novo na capital, seria o bastante. Não foi. 

“Essas mulheres costumam ser ríspidas e contra jornalistas”, me informaram alguns colegas. Mas ninguém aconselha a jornalista a ter prudência com a dor do outro. Com esta experiência, entendi que a empatia foi a forma que brancos passaram a usar para fingir entender. Não é bem assim. Do alto da minha falta de privilégios, eu tive consciência que, mesmo assim, eu estava em vantagem em relação às minhas fontes. Como então uma jornalista que tem tudo pode afirmar que entende a fome?

Ouvir verdadeiramente uma fonte, principalmente mulheres em situação de vulnerabilidade, é abandonar qualquer certeza. A jornalista não pode ter espaço para preconceito. Em seu livro “O Nascimento de Joicy”, Fabiana Moraes nos alerta para estarmos abertas ao não saber. Pois jamais teremos a habilidade de nos colocarmos no lugar do outro. É impossível. Isso não nos impede, porém, de analisar os problemas humanos. Para isso, precisamos então abdicar da unilateralidade e mostrar um pouco de nós.

Algumas e alguns jornalistas acreditam que romper essa linha de distanciamento com a fonte e compartilhar nossas histórias de vida é errado. Acredito, na experiência que vivi, que roubar a dor do outro e considerá-la sua é egoísmo – e isso, sim, me parece errado. Devemos sim, nos mostrar humanos, principalmente quando a fonte está sendo machucada por suas próprias lembranças. É aquilo de saber parar de fotografar quando as lágrimas da fonte rompem em desespero. 

Após horas de conversas com elas, foi praticamente impossível não ajudá-las. Alguns consideram antiético, principalmente em pautas como essa, que a jornalista dê dinheiro. Infelizmente, ao ver aquelas mulheres desesperadas por um pedaço de pão para os filhos que as acompanhavam, antiético seria não auxiliá-las com algum valor ou alimento. 

Não o fiz para me sentir bem comigo mesma, fiz porque era o certo. Àquela altura, ainda não sabia onde a matéria seria publicada, ou mesmo se seria. No fim, foi capa da edição impressa do jornal O Povo. Não sabia também, caso fosse publicada, se teria o impacto necessário para o governo ou outras organizações fazerem algo a respeito para romper com aquela linha de desigualdades. Mas eu sabia que naquele momento, levá-las para comprar alimentos daria ao menos uma semana tranquila para elas. 

Então, após entrevistá-las, decidi ajudar cada uma como podia. Para algumas, dei dinheiro. Com outras, levei suas crianças para lanchar. E com uma delas, devido à intensidade da fome que vivia, fui até o supermercado, onde ela pôde fazer a compra dos alimentos que precisava. Lembro que ela me perguntou: “posso pegar o frango ou só as moelas?” Disse que ela podia escolher o melhor. A dignidade dela valia mais. Embora possa soar antiético para uma jornalista fazer isso, me soou como o melhor a fazer como ser humano.

Pensando nessas tantas inquietações que temos enquanto exercemos nossa profissão, deixo aqui uma lista de dicas que podem contribuir quando você tiver que enfrentar uma situação parecida com a minha.

4 dicas para escutar as fontes de forma humanizada

Tenha uma escuta atenta

Na universidade, não nos preparam realmente para ouvir as pessoas. Nos ensinam a escrever título, abre e lead. Nos ensinam a decorar a passagem para falar em frente às câmeras. Mas não nos ensinam a ouvir verdadeiramente. Esteja pronta ou pronto para se assustar e, até mesmo, se emocionar ao ouvir alguém durante uma entrevista. Mostrar que você é humana ou humano é uma forma da sua fonte saber que está sendo verdadeiramente ouvida. No entanto, não tome o protagonismo da história. Você está nesta história como ouvinte, não como narrador.

Jornalistas não são super-heróis

Embora a vontade de ajudar seja grande, não faça promessas que não pode cumprir. Às vezes, as fontes estarão extremamente sensibilizadas, e podem esperar que você faça algo por elas naquele momento. Saiba quais são seus limites. Não se sinta mal se não puder ajudar financeiramente. Só se lembre de fazer um bom trabalho, tendo respeito por aquelas histórias. Mas se caso conseguir de alguma forma contribuir diretamente para a qualidade de vida daquela fonte, opte por fazê-la após as entrevistas ou após a publicação do seu material. Não confunda ajuda com compra de fonte.

Busque entender sobre políticas públicas

Recentemente, a Abraji lançou um curso sobre políticas públicas para jornalistas. Busque entender melhor quais são os deveres e direitos do Estado quando for desenvolver reportagens sobre desigualdades ou envolvendo pautas de diversidade. Cobre às pastas do governo o papel delas e entenda o que está acontecendo. Se a informação não chegar antes da publicação, explique ao seu leitor o que aconteceu. Garanta que a história completa chegue a quem for ler.

Então eu tenho que dar dinheiro para ser humana?

Sempre que escuto histórias difíceis, eu penso como seria bom não sentir nada. Eu, particularmente, sou tomada por muita raiva, por tanta coisa ruim estar acontecendo, e o máximo que posso fazer é ajudar no complemento de uma cesta básica. Fabiana Moraes sentiu algo semelhante quando apurava sobre Joicy, como relata no livro-reportagem “O Nascimento de Joicy”. Ela disse que “colocar-se no meio da vida dos outros, da dor dos outros, dos anseios dos outros têm um custo alto quando estamos impedidos de realizar essa aproximação”. Não estou, neste texto, falando que todos devemos ajudar financeiramente nossas fontes. Isso seria impossível, principalmente com o valor que um jornalista recebe atualmente. O que quero na verdade dizer é que às vezes, o desespero do outro vai nos invadir, e talvez, deixar que isso ocorra nos melhora como jornalistas. Além disso, saber como se portar quando optamos por não ajudar diretamente, é algo importante também. 

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