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A segurança de quem faz comunicação começa pelo cuidado



Se você acompanha a Diversa há algum tempo, já deve saber que aqui na Énois criamos e foralecemos um espaço chamado Café de Afetos, que é um momento em que tiramos para nos apoiar, nos ouvir, compartilhar nossas angústias e celebrar. Estamos, neste ano em que completamos 15 anos de estrada, lendo e compartilhando os ensinamentos de bell hooks em "Irmãs do Inhame". Neste livro, a autora compartilha estratégias de autorrecuperação para mulheres negras.
Aliás, foi com uma citação à bell que Agnes Karoline, assessora do Programa de Proteção e Participação Democrática da ARTIGO 19, abriu nossa última RedaçãoAberta: "a  tarefa de fazer do lar uma comunidade de resistência tem sido compartilhada por mulheres negras globalmente, especialmente mulheres negras em sociedades de supremacia branca", trouxe ela.
E o que isso tem a ver com proteção e segurança de jornalistas e pessoas comunicadoras periféricas?, você talvez pergunte.

Tudo.

Não só as mulheres negras estão à frente de organizações e iniciativas de mídia periféricas, como são elas as maiores responsáveis pelo trabalho de cuidado na nossa sociedade. É o compromisso com o cuidado que garante a sobrevivência, ou a resistência, como falou bell hooks, dessas mulheres, suas pessoas e seus sonhos.

É esse compromisso também que garante a eficiência nas ações de proteção a jornalistascomunicadoras e comunicadores periféricos Brasil afora."A cultura de cuidado precisa ser muito fortemente implementada pra gente conseguir consolidar a proteção", nos lembrou Agnes Karoline na última Redação Aberta.
"Quando as vozes de mulheres negras, periférias, cis e trans, comunicadoras comunitárias, LGBTQIA+, desafiam o interesse de muitos indivíduos e grupos que se beneficiam muito com a desinformação, quando essas vozes vão a público e conseguem impacto social, a gente percebe que comunicadoras e jornalistas, que também atuam como artistas e ativistas, começam a ser coagidas por esses grupos. Muitas vezes estão sozinhas nesse trabalho e se sentem isoladas", explicou Agnes.
O Café de Afetos nasceu por causa do isolamento concreto. Durante a pandemia de Covid-19, para nossa proteção e saúde, sentimos que precisávamos trazer a dimensão humana e vulnerável para dentro da organização também. Hoje ele é, ao mesmo tempo, um grupo de apoio, de leitura, um espaço de escuta e desenvolvimento para as necessidades da equipe e um espaço ritualístico.
Assim também funciona a Redação Aberta, só que voltado para a nossa rede. Em tempos em que o mundo do trabalho passa por diversas transformações, é preciso reunir e aquilombar o jornalismo local.
Afinal, as tecnologias de cuidado coletivo são, como Agnes nos lembrou e não podemos esquecer, ancestrais. Banho de ervas, banho de igarapé, os ebós, as danças coletivas, em roda, o aquilombamento, os aldeamentos, e todas as atividades que nos dão senso de comunidade, pertencimento e escuta. Aqui na Énois temos sistematizado e compartilhado algumas tecnologias sociais, como a da criação de espaços de escuta e cuidado nas redações e a da identificação de estresse e desequilíbrio emocional entre jornalistas. 

Em uma dimensão mais tática, as estratégias de proteção a pessoas comunicadoras devem considerar, assim como a formação da equipe, as elaborações das pautas e o diálogo com a audiência, as desigualdades estruturais que nos afetam. A interseccionalidade, portanto, deve ser premissa para pensar a segurança de jornalistas e pessoas comunicadoras no Brasil.
De um ponto de vista político, como ressaltou Agnes, é necessário fortalecer o estado democrático de direito, criar proteção para grupos de comunicação popular e independente e acompanhar o modelo de negócios que tem concentrado a economia e o poder do mercado nas grandes empresas de tecnologia, de comunicação e das plataformas digitais. Isso tudo diz respeito à proteção e segurança de quem faz comunicação desde as periferias das cidades e do Brasil.
A rede de apoio é fundamental para essa proteção também. Uma ameaça não tem o mesmo peso se direcionada para alguém que não está em isolamento. Sabemos, porém, que quando as ameaças partem daqueles que têm poder, inclusive dentro das estruturas do Estado, as estratégias precisam ser mais sofisticadas. 

Principalmente num Brasil pós-assassinato de Marielle Franco.
A resposta sobre quem mandou matá-la nos revelou, ao mesmo tempo, a capacidade da sociedade civil articulada de cobrar pela manutenção e garantia dos direitos humanos e a capacidade dos algozes no poder de usar o Estado democrático para fazer valer sua vontade. 
E aqui, sugiro que você tome um tempo para ouvir a segunda parte do episódio “Histórias sem fim” do podcast Rádio Novelo Apresenta, com Fernanda Chaves, assessora de imprensa e sobrevivente ao atentado que matou Marielle e Anderson. Em um ponto da entrevista, ela menciona a rede de apoio e o cuidado que recebeu logo na manhã seguinte ao atentado. Um desses cuidados a marcou. Ela ouviu de Dilma Rousseff, ex-presidente do Brasil e sobrevivente da violência de agentes do Estado: “você tá tendo tremedeira, né, minha filha? Deixa, não segura, não. Eu sei como é que é. Muito ruim, vem de dentro do couro cabeludo”.
Em outro ponto, ela revela o cuidado e o exercício de autocontrole descomunal que precisou ter para proteger a imagem da Marielle logo após o crime – estratégia de segurança que precisou ser reforçada ainda meses após o ocorrido, quando informações falsas sobre Marielle Franco começaram a circular.
Ela menciona também o choque de descobrir que, enquanto ela saía do país e cortava comunicações com amigos e familiares para se proteger, os mandantes do crime sempre souberam de seu paradeiro. Isso porque um deles era o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa, antes tido como pessoa de confiança dela, de familiares e amigos.
Você e sua organização podem se informar sobre estratégias de proteção para defensoras e defensores de direitos humanos neste guia produzido pela Justiça Global em parceria com a ARTIGO 19. 
Neste outro guia, produzido pela Agência Mural e ARTIGO 19, saiba o que implementar nos aparelhos de telefone e computadores para segurança digital, como construir senhas seguras, como assegurar aplicativos, conheça formas de navegação segura e segurança nas redes sociais. 
Para quem enfrenta censura de gênero, vale conferir este guia da ARTIGO 19, que sistematiza algumas práticas da organização, inclusive a tecnologia de mapeamento de atores, que demonstra a importância de saber quem são as pessoas e organizações que são aliadas, mesmo que trabalhemos sozinhas.
A forma mais comum de censura no Brasil, aliás, é a censura judicial. Confira abaixo algumas orientações que Mônica Galvão, advogada especialista em casos de liberdade de expressão e co-fundadora do Instituto Tornavoz, compartilhou na última Redação Aberta para evitar questionamentos e censura judicial. 
Para saber mais e acessar outras orientações pertinentes à segurança e proteção de comunicadoras e comunicadores periféricos, assista ao conteúdo no nosso YouTube. 

Dica 1: Cuidado ao utilizar expressões técnicas: A expressão denúncia no Direito, por exemplo, tem um sentido específico. Outro exemplo é quando vamos falar que o funcionário público foi exonerado ou saiu a pedido. Esses tipos de jargão costumam dar muito pano pra manga em ações judiciais. Verifiquem as informações técnicas que vão usar em matérias jornalísticas e usem a expressão apropriada.

Dica 2: Dê o mesmo destaque ao “outro lado”: é uma preocupação que pode salvar um questionamento judicial. Você deve ouvir o “outro lado” e fazer constar no texto com o mesmo destaque da apuração crítica. A orientação é fugir do “outro lado” burocrático, pois o equilíbrio é muito considerado pelos juízes.

Dica 3: Atenção ao reproduzir entrevistas: esse é um item novo de preocupação na vida das pessoas jornalistas. Alguns meses atrás, quando a pessoa jornalista reproduzia uma entrevista, a preocupação era somente de ter o registro da gravação, para verificação. Isso mudou após uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal e, agora, a pessoa jornalista  deve analisar o teor da fala de quem entrevistou antes de sua reprodução. A declaração é razoável? Existem elementos que coloquem a declaração em dúvida? É uma informação sabidamente falsa? Se for, a pessoa jornalista pode ser responsabilizada.

Dica 4:Pense bem em como vai compartilhar nas redes sociais: sabe por que o New York Times falou a seus jornalistas para reduzirem o uso do X? A dinâmica das redes sociais exige uma rapidez quase incompatível com o cuidado que o texto jornalístico exige. Uma matéria bem feita, redonda, sem nada pra questionar, pode ser alvo de um questionamento judicial por causa da maneira como ela é apresentada em uma rede social.
Até a próxima! Se precisar, estamos por aqui.