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As inteligências artificiais vão acabar com o jornalismo?



De tempos em tempos, quando uma nova tecnologia é criada, surge com ela uma pergunta apocalíptica para o jornalismo.

Se a sua preocupação é com a possibilidade de uma máquina te substituir enquanto jornalista, fica tranquila. Isso não vai acontecer tão cedo. O seu cérebro, o seu corpo e a sua vivência são bem mais complexos e eficientes que um algoritmo.

Existem cenários sombrios? Sim. Também existem muitos questionamentos sobre o impacto do uso das inteligências artificiais no ecossistema da informação e na própria democracia – o que inclui a própria Internet como a conhecemos e a já aguerrida batalha contra a desinformação. 

A newsletter Farol Jornalismo fez um ótimo apanhado sobre essas discussões nesta edição aqui (para os conteúdos em inglês, sugiro a tradução que o navegador Google Chrome possibilita). 

Mas de cara, arrisco a dizer que quanto menos nos deixarmos agir pelo automatismo na cobertura e mais exercitarmos um jornalismo focado nas pessoas, que responda às perguntas óbvias que todos os dias o noticiário deixa passar, mais distante de sermos assimilados pelas máquinas estaremos. Ou de apurarmos e escrevermos como elas.

Afinal, para a pergunta-clichê-apocalíptica temos também a resposta-clichê-renovadora: de que jornalismo estamos falando? Daquele que reproduz estereótipos? Daquele que se baseia numa cobertura cheia de vieses de confirmação? 

Desconfio que nutrir as relações de jornalistas com suas comunidades, fazer de dentro para dentro, nas favelas, periferias e interiores do país, é o que pode garantir não só a integridade da informação, mas a confiança de que essa informação vem de alguém que vive e conhece aquele território. Além disso, é o que pode fortalecer a pluralidade de fontes de informação na Internet, das quais as próprias inteligências artificiais se alimentam e reproduzem. 

"A inteligência artificial é um grande algoritmo de rede neural que analisa um grande volume de dados do que tem na internet”, explicou Rosângela Menezes, jornalista e fundadora da Awalé, na última Redação Aberta. “Na verdade, a gente tem, como comunicadores, o desafio de produzir mais conteúdo focado em quebrar estereótipos. É através dessa produção que nós, enquanto rede de jornalistas, poderemos em algum momento, lá na frente, fazer o ChatGPT identificar não-estereótipos. Na Awalé, por exemplo, a gente só fala de mulheres negras e indígenas".

Pois é. Vamos lembrar que a Internet e seus algoritmos se conformam dentro do mundo em que vivemos. O ChatGPT, por exemplo, se baseia muito em formas de textos e imagens comuns em culturas anglófonas, eurocêntricas, masculinas e brancas.

Toma aí mais um clichê: talvez as inteligências artificiais estejam aí pra nos lembrarem da importância daquilo que nos torna humanos. Nada mais humano que a diversidade e a complexidade.

Dito isso, também é importante reconhecer a potência que o desenvolvimento das inteligências artificiais trazem para esse jornalismo que é produzido a partir e para as periferias do Brasil, sejam elas periferias territoriais, raciais ou de gênero.

Em contextos de poucos recursos financeiros e humanos, ter uma ferramenta para auxiliar gratuitamente cada profissional de uma organização, em diversas tarefas simultâneas, é um ganho e tanto.

"A gente não tem o tempo e nem o privilégio de outros grupos e pessoas que já aprovam grandes projetos têm, de ir pra uma casa de praia escrever projetos de lá”, compartilhou Yane Mendes, da Rede Tumulto, que fica no Recife, na última Redação Aberta. “A gente de favela escreve projeto no meio do ônibus, nas correrias do dia a dia. Isso da gente ficar dizendo que não consegue usar o ChatGPT, a gente tá replicando o que a branquitude quer. Não é sobre capacidade. Quem domina a ferramenta sai na frente e tem o privilégio nessa corrida de acessos a recursos".

Para começar, se você trabalha com informação e trabalho criativo, é preciso estabelecer alguns limites para você, sua equipe e seu público.

"Nossa maior preocupação foi como garantir a credibilidade para o nosso leitor”, explica Lucas Maia, jornalista e sócio-diretor da Agência Tatu, uma equipe de comunicação de Alagoas, focada em jornalismo de dados, inovação no jornalismo e jornalismo investigativo. “A gente criou uma política de uso de IA na redação. A máquina é uma ferramenta, e a responsabilidade de tocar um veículo de comunicação é dos jornalistas. Nunca vamos culpar o erro na máquina. Quando a gente errar, a gente errou".

Na Awalé, startup de impacto social que dá treinamento para mulheres negras e indígenas e tem sede em Santa Catarina, o caminho foi parecido. Rosângela conta que passaram a ter um uso bastante orientado do ChatGPT para não perderem a qualidade no conteúdo, que tem a premissa de ser escrito de humanos para humanos. 

"É o que eu vendo, todo mundo que escreve na Awalé é jornalista. Então tivemos todo um trabalho com a equipe pra entender como usar. Toda vez que a gente tem uma freelancer nova trabalhando com a gente, temos esse trabalho de apresentar os limites e orientar o uso. A gente não usa nas redes sociais, por exemplo, porque em todos os testes que fiz com o ChatGPT, nenhum teve um retorno satisfatório com o que a gente entrega nas nossas redes sociais".

Seja para automatizar tarefas repetitivas ou ajudar com o pensamento criativo de um conteúdo, as inteligências artificiais precisam que você dê comandos bem explicados, objetivos. Você pode escrever do jeito que fala, é até melhor. Mas provavelmente vai precisar de algumas tentativas até chegar a uma resposta satisfatória da ferramenta. Isso porque é preciso saber direcionar bem seu pedido. Se estiver dando muito trabalho, bom, aí a gente volta pro começo: a máquina não vai saber fazer o que só você pode.

Numa conversa que tive com Lucas e Rosângela para a realização da última Redação Aberta, Lucas comentou sobre a diferença entre os resultados de uma imagem que ele e o designer da Tatu pediram para a inteligência artificial produzir. A do designer foi infinitamente melhor, dizendo ele, pelo próprio conhecimento que o profissional carrega.

Reúno aqui algumas dicas compartilhadas por Rosângela e Lucas. Para mais detalhes e para continuar as reflexões sobre o tema, confira a gravação completa do nosso encontro sobre inteligência artificial como ferramenta de apoio nas redações.

1. Produção de roteiro de eventos: quando inserimos o máximo de informações, melhor o ChatGPT responde. Descreva o tema do evento, o perfil das ou dos palestrantes, moderadoras ou moderadores, o objetivo do evento e peça para o ChatGPT perguntar A ideia não é copiar exatamente a proposta, mas usar as informações como guia, principalmente se você não tem experiência em realizar eventos de debate.

2. Resumo de editais: copie e cole o texto do edital no ChatGPT. A ferramenta vai resumir. Depois, você pode fazer várias perguntas pro ChatGPT sobre este edital, como quem pode ou não participar, qual o prazo, etc. Essa utilidade pode ser especialmente útil quando se tem vários editais para ler.

3. Formatação de tabelas de PDFs: esse uso é ótimo para jornalistas que trabalham na apuração de dados fornecidos em tabelas dentro de PDFs. Você copia as informações da tabela no PDF, cola no ChatGPT e pede para que a inteligência artificial produza uma tabela com aquelas informações. Pronto, agora é só copiar e colar para uma planilha, por exemplo.

4. Sugestão de pautas: contextualize sobre o que se tratam as informações fornecidas na tabela anterior e peça para que o ChatGPT dê sugestões de pauta. De novo, a ideia não é seguir exatamente o que a ferramenta propõe. Faça uma análise crítica e utilize as referências para desenvolver suas pautas.

Se quiser continuar essa conversa, responda a esse e-mail! Vou adorar saber o que você pensa sobre o assunto.

Até mais!