“Não pode ser pandemia só quando atinge brancos”

Diversa

“Não pode ser pandemia só quando atinge brancos”

14 de Maio de 2020

A subnotificação dos dados e o impacto da pandemia de coronavírus na vida da população negra, pobre e periférica

A frase título desta diversa que analisa a cobertura do coronavírus na imprensa pelo viés da diversidade, é de Gisele Brito, jornalista, coeditora do podcast Pandemia sem Neurose, mestranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e pesquisadora do LabCidade. Ela também foi coordenadora da Escola de Jornalismo da Énois, de 2018 a 2019.
Gisele aponta que é preciso cuidar para que, quando a população branca de classe média não se sentir mais ameaçada, o coronavírus continuar sendo relevante. Só a partir do dia 10 de abril – e depois de passar de 1.000 mortes – o Ministério da Saúde passou a divulgar dados raciais da epidemia. E isso só depois de pressão de grupos do movimento negro.

Gisele Brito, jornalista

Não pode ser pandemia só

quando atinge brancos

Diversa – A cobertura da imprensa periférica mudou por conta do coronavírus? Por quê e de que forma?
Gisele – As mídias periféricas e de quebrada têm uma ação de enfrentamento ao genocídio da população preta, pobre e periférica, e rapidamente foi interpretado que o coronavírus poderia intensificar esse genocídio, matar as pessoas economicamente, simbolicamente, materialmente, socialmente e biologicamente. A doença deu oportunidade para novas formas de se comunicar, estratégias diversificadas, ações em rede e acelerou processos de inovação de linguagem e produtos. Não mudou a cobertura, mas trouxe uma urgência por ter tanto impacto no projeto genocida, na necropolítica.

D – O coronavírus aproximou a imprensa periférica das periferias?
G – Não, as mídias feitas a partir das periferias sempre estiveram perto das periferias. Evidenciou a diferença que faz você estar produzindo conteúdo desse lugar, dessa perspectiva. Não só da perspectiva geográfica, mas de uma perspectiva política e cultural.

D – O que precisa ser feito – e noticiado – agora para que todos possam se proteger?
G – É muito importante que a mídia atue no sentido de cobrar a elaboração e a adequação de políticas públicas. A renda emergencial de R$ 600 tem muitos problemas ainda, que precisam ser visibilizados para que seja reformulada. Há demandas muito evidentes de políticas públicas (Periferia em Movimento fez um texto com 16 perguntas sobre o coronavírus antes da quarentena e toda pauta estava ali) que precisam ser atacadas: a testagem, a saúde de família, garantia de renda e dos serviços básicos independente dos pagamentos, saneamento básico, atendimento às necessidade básicas de higiene. Para o futuro, a moradia adequada, que está em pauta há mais de 40 anos no Brasil e a gente vê que pouco andou. É uma doença que vai ter marcação de território, gênero (já está se evidenciando) e raça muito forte. E vai ficar evidente como o fator estruturante da desigualdade é a raça.

Os números vão mostrar que mesmo entre pobres e periféricos em situação semelhante de habitabilidade, a população negra vai ser mais vitimada. A prefeitura de São Paulo está preparando esses números e alertou que a população negra vai ser a mais afetada porque as comorbidades que aumentam a letalidade têm correlação intrínseca com a população negra: diabetes, hipertensão, anemia falciforme, condições de subnutrição. É muito importante marcar isso no corona e cuidar para que quando a doença chegar nas periferias, tiver essa cara e finalmente a população branca de classe média, os homens da família tradicional brasileira não se sentirem mais ameaçados, ela continuar sendo relevante. Não pode ser pandemia só quando atinge brancos.

D – A periferia está mais e melhor representada na imprensa tradicional por conta do coronavírus?
G – Rapidamente a mídia tradicional entendeu que, dadas as condições de ocupação das cidades, o Brasil tinha situações diferentes de outros países e as características da periferias e dos subúrbios foram publicizadas. Não acho que o mundo finalmente esteja pensando nas periferias, há um exercício automático em classificar o problema como do outro, não poderia ser da classe média, onde inicialmente o coronavírus estava concentrado. E me preocupa um pouco o fato de não haver enfrentamento sistemático das questões. Essa forma de ver as periferias como se precisando de uma solução rápida pode ser muito perigosa por ser higienista, remove pessoas, desconsidera formas de vida e lugar de moradia das pessoas.

NO RADAR

 

► A semana foi marcada por ações na justiça norteando as ajudas emergenciais do governo, o conhecimento de que há mais de 5 milhões de invisíveis aos auxílios e da pressão sobre o SUS, que precisa de obras urgentes.

► Jornalistas vêem demissões, redução de salário e aumento de jornada em meio à pandemia. E os impactos se estendem por toda a América Latina.

► Periferias A Ponte mostra que a falta de água continua nas periferias de São Paulo e a de resposta do governo sobre o problema também. Ações de enfrentamento à doença nas favelas para fazer o trabalho que o governo não faz são destaque na Folha, que mostra Moradores de favela no Rio fazem limpeza de ruas por conta própria e que Paraisópolis terá área para isolar moradores com sintomas leves de coronavírus, numa editoria chamada Dias Melhores. E um ensaio fotográfico mostra a resistência nas periferias: os jardins do lado de lá.

► Prisões A Ponte mostra que a segunda morte por coronavírus nas prisões ocorreu no domingo (19) em Sorocaba. A primeira foi no Rio de Janeiro. O painel do Depen (Departamento Penitenciário Nacional) registra 158 presos no País com suspeita da doença e 62 casos confirmados. O Nexo traz uma análise de que o coronavírus traz à tona os problemas estruturais do sistema penitenciário.

► Norte e Nordeste Pernambuco, Ceará e Amazonas têm sido seguidos mais de perto pela cobertura nacional a partir do momento que o coronavírus pressiona mais o serviço de saúde destes estados. Estadão mostra que Posto de saúde de Manaus tem 52 profissionais afastados em uma semana por covid-19 e que em Pernambuco, onde 95% das UTIs estão lotadas, um em cada três infectados é profissional da saúde.

► Redações remotas e mais diversas O consultor de jornalismo Tom Trewinnard prevê que o homeoffice vai continuar nas redações após a crise do coronavírus e tem que favorecer a diversidade. O Poder 360 traduziu o texto do NiemanLab.

Acompanhe as últimas reportagens publicadas pela parceria da Énois com Gênero e Número, AzMina e data_labe:

Pandemia dificulta acesso a contraceptivos quando mulheres mais precisam evitar gravidez. Ginecologistas recomendam que mulheres não engravidem, mas pacientes relatam cancelamento de inserção de DIU e ONU alerta para desabastecimento de camisinhas, na revista AzMina.

Como está a saúde para pessoas trans no SUS? Sistema de saúde realizou mais de 13 mil tratamentos em 2019, mas com a pandemia, falta informação sobre a suspensão de hormônios e o adiamento de cirurgias; ambulatório referência em MG mantém atendimento clínico online. Gênero e Número

“Nem sei desse vírus, o que está me doendo é a fome”. Falta de dinheiro para comida é realidade em meio ao isolamento social decretado pelo governo do Rio de Janeiro para combater Covid-19. Do data_labe.

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