Em São Paulo, fazer 10 integrações entre trem e metrô pra chegar em casa é normal
Quem mora em São Paulo já deve ter tido aquela velha sensação de algo errado, quando usa os metrôs e trens. Por que eles demoram tanto para chegar? Por que os vagões estão sempre tão lotados? E as várias estações que ficam sem funcionar aos finais de semana?
Essas foram algumas das perguntas que vieram na cabeça dos e das estudantes da Escola de Jornalismo da Énois quando foram provocados a refletir sobre a corrupção na cidade. O exercício foi pensar pautas de interesse público que nos atravessassem diariamente, e assim os trens e metrôs entraram na conversa. Nossa missão era criar um podcast sobre isso. Nasceu, assim, o Corrupcast. O processo foi coordenado por Gisele Brito, jornalista e mestranda em Planejamento Urbano na FAUUSP.
A Énois hoje é um laboratório que apoia o desenvolvimento de jovens jornalistas para que reflitam e produzam jornalismo diverso.
“O trem sempre foi uma coisa que me atravessou muito… Mais enquanto lugar relacional, enquanto lugar de incômodo. Sabe quando fica aquela coisa de “acontece alguma coisa aqui mas eu não sei explicar o que é”? Por que é tão ruim? Por que demora tanto?”, lembra Breno Andreata, estudante de audiovisual, produtor, ator e jornalista formado pela Énois.
Para achar um recorte no meio desse tema, foi preciso muita investigação e apuração. A partir de relatos de conhecidos e dos nossos mesmos, fomos nos perguntando quem estava por trás das construções das linhas de metrô e trem. Envolviam empresas privadas? Quais materiais elas usavam nessa construção? Como funciona o processo de escolha para uma empresa participar de uma obra pública?
Fomos pra internet. Direcionamos nossas pesquisas para casos de corrupção que envolviam essas instituições. Procuramos reportagens já feitas sobre esse assunto, vídeos e notas públicas. Foi assim que chegamos até o Cartel de Trens. Como o nosso Corrupcast explica, um Cartel acontece quando duas ou mais empresas que deveriam ser concorrentes, passam a agir como parceiras, combinando preços, manipulando ofertas e dividindo clientes e serviços.
“Um exemplo que podemos usar para dimensionar você é: sabe aquele esquema que tem em muitos terminais de ônibus e estações de trem e metrô, de vender 10 pães de queijo por um real? Agora imagina se, de repente, uma grande empresa de pão de queijo combina com o lugar que você sempre compra, e com as outras empresas que também vendem 10 pães de queijo por 1 real, que a partir de um determinado momento, vão passar a vender a mesma quantidade de pães por cinco reais. Então, isso é um cartel e isso é crime”, trecho do primeiro episódio.
Esse Cartel de trens que agia desde 1999 em São Paulo e outras regiões do Brasil, já tinha fraudado milhões e milhões de reais, e infelizmente, era desconhecido pela maioria da população. Principalmente por quem andava todos os dias de trenzão.
“Era um assunto muito maior do que aparentava e muito maior do que a gente conseguiu apresentar, porque ele se conectava com muitos outros casos de corrupção e ele levantava vários podres da CPTM e do Metrô. Existiam várias dúvidas e pautas diferentes que se conectavam, mas precisávamos restringir isso. Então nós decidimos pegar somente processos deste caso que já tinham sido julgados pelo CADE”, explica Ingryd Victoria, analista de marketing e jornalista formada pela Énois. Nosso amigo CADE, muito pesquisado durante a apuração, é o conselho administrativo de defesa econômica, que fiscaliza e pune crimes de cartel e lavagem de dinheiro.
O desafio agora era transformar esse assunto tão denso e que envolvia tantos números, nomes e empresas, para algo de fácil entendimento e acessível a população. Foi pensando nesse reconhecimento com nossos ouvintes, que dividimos o Corrupcast em três episódios. Entrevistamos pessoas que passam diariamente na pele as consequências dessas fraudes. Conversamos com o Marcelo Mendroni, promotor de justiça e responsável por esse caso no CADE. Trouxemos toda a nossa vivência diária dos vagões, e criamos a partir da linguagem e efeitos sonoros, um Corrupcast perfeito para quem pega o trenzão várias vezes por dia.
EPISÓDIO 1: Estamos seguindo com velocidade reduzida e maior tempo de parada
No primeiro episódio, nós falamos sobre os intervalos dos trens nos dias da semana. O quanto eles afetam a rotina dos usuários nas suas idas e vindas, e como estes intervalos estão relacionados ao superfaturamento de licitações por empresas privadas. A escolha da personagem para esse episódio precisava refletir diretamente as consequências na rotina que esses atrasos causam. Aline Aparecida Partezani, que é moradora de Mauá, fazia 10 baldeações por dia para ir estudar, trabalhar e depois ir para a casa.
“Acompanhamos ela o dia inteiro. A gente saiu de casa 5h e eu cheguei no Grajaú, onde moro, às 00h. Passamos pelo que ela contou junto com ela. Pra mim, como jornalista, foi uma fita inesquecível. Os temas foram se casando através da história e trajetória dela”, conta Gustavo Revaneio, artista, comunicador e jornalista formado pela Énois.
EPISÓDIO 2: Este trem não seguirá viagem
No segundo episódio encontramos, James Neris, que mora em Vila Nova, Perus. Solange Xavier da Silva, Rodrigo Lacerda e a filha Agatha Xavier Lacerda de 11 meses, que no dia da entrevista estavam indo fazer uma visita pra um familiar em Santo André, vindos da linha 7 – Rubi. E Rayane Rodrigues de 27 anos, que desabafou com a gente, “Quase toda população precisa do transporte público e não é um transporte de qualidade, não é um transporte rápido. Significa uma falta de respeito imensa com a população né. Porque a gente não deixe de pagar impostos”.
Nesse episódio, abordamos as manutenções e atrasos nos finais de semana. Foram encontradas mais fraudes nos processos de licitações, que refletiam diretamente nas alterações da circulação em 70% da linha 9 – Esmeralda, que vai de Osasco a Grajaú, e segundo o relatório deste ano da CPTM, somente no mês de Agosto teve 1.003.002 embarques na estação Grajaú.
Outra linha com recordes de embarques, desembarques, atrasos e manutenções da grande São Paulo, foi a 7 – Rubi, que vai da Luz até Jundiaí. E, segundo a pesquisa levantada para este Corrupcast, tem 44,6% da sua circulação reduzida aos finais de semana. Essas alterações no transporte fazem o acesso aos espaços de lazer no centro da cidade ser mais difícil pra quem mora nas periferias.
EPISÓDIO 3: Qual a distância entre o trem e a sua paciência?
Após a gravação e edição, passamos alguns dias construindo um evento que pudéssemos tanto distribuir os dois primeiros episódios, como também gravar o terceiro numa roda de conversa sobre direito à cidade. Nosso objetivo era alcançar outros jovens e produzir algo artístico juntos. Por isso, achar o lugar certo e o formato ideal do evento não foi nada fácil.
Depois de muito planejamento, opções derrubadas e um pouco de estresse, fizemos uma roda de conversa. É a gravação desse encontro que você pode ouvir no terceiro episódio. O evento contou com presença do Pedro Marcondes, um dos jornalistas mais conhecidos por cobrir esse caso, Gisele Brito, jornalista e coordenadora da produção do Corrupcast e Wellington Neri, artista, filho da cultura hip hop, educador e produtor cultural. O debate foi importante pra gente trocar sobre como o jornalismo pode chegar mais perto da população pra informar sobre casos de corrupção como esse.
“Participar do Corrupcast foi uma experiência muito diferente de muitas coisas que eu já fiz na minha vida. Tanto no que diz respeito ao jornalismo, quanto na tecnologia, dança e cultura, porque primeiro, nunca tinha feito um podcast, envolvendo ainda a CBN, e também porque nunca tinha mergulhado no estudo de investigações em assuntos que tinha como base a corrupção”, conta Júlio César, artista, dançarino, amante da tecnologia e jornalista formado pela Énois.
Foi seguindo nessa trilha que chegamos no Slam do Grajaú com o coletivo Imargem. “Eu fui entendendo como os muros são comunicativos. E entendendo que o infografite dialogaria mais nessa distribuição, por estar nos muros. Foi algo que casou muito”, lembra Gustavo. “Para mim não fazia sentido eu estar falando sobre o território e não poder dialogar com ele, ainda mais sendo o meu território. A questão era também que essas pessoas precisavam saber que isso estava acontecendo. O slam é um espaço que distribui informação. É um lugar muito potente, de poesia, de informação, de manifestação, de expressão artística das pessoas”.