Entramos no futuro de costas

Diversa

Entramos no futuro de costas

26 de setembro de 2022

 

Depois de treze anos extraordinários, meu tempo na Énois está chegando ao fim. Começo avisando que não está sendo fácil escrever uma carta de despedida. Terminar as coisas sempre dói – por melhor que o processo seja.

 

Nina Weingrill, co-fundadora da Énois

À nossa comunidade maravilhosa da Énois,

Depois de treze anos extraordinários, meu tempo na Énois está chegando ao fim. Começo avisando que não está sendo fácil escrever uma carta de despedida. Terminar as coisas sempre dói – por melhor que o processo seja. Então, correndo o risco de editar a história deixando coisas importantes de fora (e de usar muitos adjetivos), convido você a segurar na minha mão pelos próximos parágrafos 🙂

***
“Entramos no futuro de costas.” Ouvi essa frase num encontro em que participei com organizações de mídia cívica em Atlanta, nos Estados Unidos, há duas semanas. Era a segunda vez que visitava a cidade, após um intervalo longo de exatos 20 anos. Aos 16 ganhei uma bolsa de estudos para conhecer de perto o movimento dos Direitos Civis liderado por Martin Luther King Jr. Foi quando entrei em contato com a história de resistência e ativismo do movimento negro norte-americano. Nem preciso dizer que, como uma criança branca de classe média do interior de São Paulo, não havia sido educada sobre o que era racismo – Brasil, anos 90, cê lembra? 

Aquela viagem me marcou profundamente, mas eu só saberia duas décadas depois o quanto. De volta à cidade, me encontro com jornalistas e ativistas que trabalham de forma incansável para atender às necessidades de informação de suas comunidades – na maior parte não brancas e periféricas. Estava lá para compartilhar os aprendizados do meu trabalho aqui no Brasil, com a Énois: 13 anos dedicados a pensar e construir um jornalismo que reflete a estrutura social, econômica e racial do país. 

Quando contei que estava de saída da organização, sucessão virou o tema central das conversas. A pergunta entre todes era a mesma: “como é que faz isso?” Fiquei surpresa ao perceber que, como eu, a maior parte das pessoas ocupando cargos de direção desejava transicionar. Pela primeira vez, eu não precisava explicar a ninguém a importância de pensarmos a alternância de poder. Que alívio!

Voltei para casa animada, com a sensação de que talvez meu movimento faça parte de um movimento maior, de organizações da sociedade civil que foram fundadas nos últimos 10 anos e que, agora maduras, começam a pensar como suas fundadoras e fundadores abrem espaço para que a próxima geração assuma o comando. 

Claro que não sou a primeira e tive referências importantes (com as quais conversei muito. Obrigada Tony, Ju, Carol, Graci e tantos outros) para escolher de que forma eu queria conduzir esse processo. Mas fato é que esse caminho ainda foi pouco trilhado. Boa parte das organizações sociais nascidas nos anos 90 têm lideranças que, por diferentes motivos, continuam a presidir as instituições que ajudaram a fundar. E tudo bem se funciona pra elas. 

Mas isso sempre me incomodou um pouco. Por um lado, de ter que fazer uma única coisa daqui pra frente, porque sim, a responsabilidade é imensa. E de outro, que organizações da sociedade civil deveriam operar, como o nome já diz, a partir de um movimento dessa própria sociedade organizada – e não de uma ou duas cabeças. 

Por isso, venho abrindo há alguns anos espaço interno para viver uma transição. E há um ano de forma consciente e compartilhada com minhas parceiras e parceiros de jornada. Uma coisa posso dizer já: que importante é poder passar por essa experiência de um jeito transparente e coletivo. E, no meu caso especificamente, poder ter tempo para reconhecer as mudanças que operamos juntas e juntos.

Quando começamos a construir essa história, muitas das coisas que hoje temos como óbvias (diversidade, inclusão, representatividade) eram uma grande novidade e geravam até muita resistência no campo jornalístico – lembra também que o Brasil não era racista pra revista Veja? Treze anos depois, muita coisa mudou, dentro e, especialmente, fora da Énois. E eu gosto de contar a mim mesma que a organização que ajudei a construir teve um papel importante nesse atravessar. 

Estar na Énois, ao lado de tantas pessoas sensíveis e comprometidas, foi transformador. Aprendi como criar mudança no mundo. Como usar minha mente, meu corpo, meus privilégios e meu espaço para compartilhar poder. E em meio a muitos (mas muitos mesmos) erros e alguns bons acertos, me senti sempre segura, apoiada e pertencente.

Aprendi a formar gente, a me formar, a co-liderar, a ouvir, a sair de cena. E a entender, acima de tudo, que, se queremos construir uma organização diversa, é imperativo termos alternância de poder. 

Este passo abre um buraquinho para que isso aconteça numa organização que foi fundada por mulheres brancas e de classe média. E que sente que é tempo de entregar às mãos do futuro uma estrutura que precisa atender a novas demandas que se apresentam. 

Tenho enorme segurança de que a Énois será acompanhada pelas melhores, minhas maiores parceiras Amanda e Simone – que honra foi crescer ao lado de vocês. As duas, cada uma a seu jeito, me mostraram como o mundo pode ser quando uma organização e as pessoas que nela trabalham dedicam tempo para construir confiança, escuta e afeto. Se posso optar por fazer um trabalho feminista, anti-racista e que busca por equidade – sem descuidar da minha saúde mental –, é porque elas me ensinaram a fazer isso.

Agradeço em especial a essa equipe comprometida que fica (Bruna, Carol, Flávia, Gisele, Glória, Isa, Ivan, Jéssica, Mel, Sanara, Sara) e sua abertura para se repensar e se reorganizar CONSTANTEMENTE (em caixa alta pra vocês entenderem a constância dessa reorganização). E à chegada dos novos, que assumem os espaços que deixo na Diretoria Financeira; Elaine Silva e Carla Pacheco, e na recém criada área de Dados e Métricas; Lucílio Correia. E aos nossos colaboradores, nossa rede, nossos apoiadores e financiadores!

Em algum momento entendi que o que eu queria ver no jornalismo não tinha lugar no mundo. Por sorte, conseguimos criar estrutura para que essa construção fosse possível. A Énois foi minha plataforma para sonhar. E como é importante a gente manter nossos sonhos vivos e aquecidos – em especial nos momentos como o que vivemos, à beira de uma eleição que simboliza vida e morte em tantos aspectos subjetivos, mas também muito reais.

Saio com o coração tranquilo de que é só o começo de outras transformações que esse organismo vivíssimo vai operar no mundo. E com uma bagagem imensa de experiências, com muitos amigos queridos, um livro que sai agora do forno que conta de forma generosa a história das pessoas que construiram a Énois (e que você pode receber apoiando a gente por aqui) e com uma festa para celebrar a democracia e nosso aniversário – no dia 05 de novembro. Marca na agenda!

Entramos no futuro de costas. E esse provérbio, que descobri ser Maori, nunca fez tanto sentido. Passado, presente e futuro estão entrelaçados e, por mais que a gente não enxergue no cotidiano, quando olhamos para trás, dá para ver o que a nossa história moldou. E o que dela escolhemos honrar, e o que dela queremos e precisamos levar pro futuro.

Seguimos juntes,

Nina Weingrill

Co-fundadora e agora ex-diretora da Énois <3

Um salve e muito obrigada a todas as apoiadoras e todos os apoiadores da Énois ♥

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