Diversa

Falta generosidade no “jornalismo profissional” brasileiro

04 de Dezembro de 2018

As campanhas de jornais pra atrair assinantes após as eleições e a importância do jornalismo diverso e local pra garantir a democracia

“Por mais que Trump diga que odeia a imprensa, ele tem sido muito bom para muitos de nós. Muitos conseguiram promoções por causa dele. Alguns de nós escreveram livros. Alguns jornais bateram recorde de lucro. Minha carreira disparou em grande parte devido à energia em torno desta eleição. Eu acho que se eu não tivesse tido aquele ano e meio cobrindo a eleição e cobrindo Trump, levaria 10 anos para chegar aqui”.

Quem disse isso foi Sam Sanders, ex-repórter da NPR durante as eleições de 2016 nos EUA, co-apresentador do Podcast Político da NPR e agora apresentador e repórter do “It’s Been a Minute with Sam Sanders”. Ele e outros jornalistas contaram aqui como cobrir o “Trump bump” mudou para sempre os rumos de suas carreiras.

No Brasil, as declarações e ameaças à imprensa feitas pelo presidente eleito, nosso Trump dos Trópicos, já começaram a mostrar sinais de que, apesar dos pesares, podemos ter aí uma luz no fim do túnel. Muita gente na minha timeline disse, por exemplo, que assinou ou reativou sua assinatura na Folha. Outros fizeram listas de jornais e veículos que podem ser apoiados (a Énois inclusive).

Para aproveitar essa boa onda, a mesma Folha lançou uma campanha para angariar assinaturas (inspirada no Washington Post) que diz:

Quando li a frase confesso que senti um incômodo. Certa vez ouvi do Pedro Abramovay que se buscarmos por “independent journalism” no Google, um dos primeiros sites que aparecem é o do New York Times – um grande jornal tradicional que se financia via assinaturas e publicidade. Enquanto que se a gente fizer a busca em português, temos em destaque o mapa do jornalismo independente da Agência Pública (uma grande lista de veículos que ainda estão quebrando a cabeça pra pagar as contas). Então o que significa jornalismo independente? Independente, para o New York Times, não tem a ver com a forma de financiamento e sim com o compromisso do jornal em cumprir o protocolo jornalístico.

Me parece que no Brasil estamos – como jornalistas – fazendo uma grande confusão que mais atrapalha do que ajuda não-jornalistas a entenderem o que é jornalismo. Quando a Folha qualifica seu jornalismo como “profissional”, ela está querendo criar uma diferenciação. Como se houvesse um tipo de jornalismo amador ou não-profissional. Quero acreditar que ela faz isso para se distanciar dos sites que poluem nossas redes com notícias falsas e desinformação. Acontece que ao fazer isso ela também desqualifica, em muitas instâncias, todos os sites que estão no mapa de jornalismo independente da Pública – porque não possuem grandes estruturas, porque têm colaboradores voluntários, ou porque não são veículos da chamada mídia tradicional. Mas que, no entanto, também estão fazendo jornalismo.

Em vez de reforçar que jornalismo tem critério e método, essas nomenclaturas confundem a cabeça de quem não sabe como o jornalismo é feito. Que precisamos buscar fontes de informação primárias, que não podemos usar declarações sem comprovação, que é preciso checar a metodologia de uma pesquisa antes de usar seus dados, que precisamos buscar a contradição em vez de uma tese, que devemos nos aproximar de quem vive a experiência sobre a qual estamos reportando. Que um texto passa por muitas mãos e visões editoriais diferentes até ficar pronto. Enfim, que tem um protocolo por trás que faz o jornalismo parar em pé. Assim como existe para medicina, engenharia e física quântica. E nem por isso a gente chama de medicina profissional, engenharia profissional. Já imaginou ser atendido por alguém que é médico amador? O nome disso é fraude.

Ao escolher essa palavra para se qualificar, a Folha dá um tiro no pé do jornalismo. E, infelizmente, deixa de ser generosa com o campo. Especialmente em um momento em que a democracia está sendo ameaçada e, quanto mais jornalismo estivermos fazendo, melhor para garantia de direitos de todos – até porque a Folha não é capaz de reportar sobre tudo o que acontece em São Paulo, que dirá nos rincões do Brasil.

Em busca de sustentabilidade

O motivo dessa busca desesperada por assinaturas é claro: a saúde financeira do jornal numa possível retirada de investimentos publicitários por parte do governo. Apesar da minha anedota do início mostrar como alguns jornalistas nos EUA ficaram felizes com a era Trump, os números lá mostram outra coisa. O total estimado de receita de publicidade de jornais para 2017 foi de U$ 16,5 bilhõesUma queda de 10% em relação a 2016.

De acordo com dados do Bureau of Labor Statistics’ Occupational Employment Statistics39.210 pessoas trabalharam como jornalistas, editores, fotógrafos ou editores de filmes e vídeos na indústria de jornais em 2017. Isso representa uma queda de 15% em relação a 2014 e 45% em relação a 2004.

Por outro lado, o financiamento para iniciativas de jornalismo sem fins lucrativos bombou. No final de 2016, a Knight Foundation, em parceria com o Democracy Fund e a Fundação John D. e Catherine T. MacArthur, lançou uma iniciativa chamada NewsMatch e ajudou 57 organizações a arrecadar mais de US$1,2 milhão em doações correspondentes. Em 2017, esse montante quadruplicou e apoiou mais de 100 organizações de notícias locais e investigativas sem fins lucrativos. É a maior campanha de arrecadação para jornalismo da história dos Estados Unidos. Foram mais de 202 mil doadores – dos quais 43 mil doaram pela primeira vez. Uma média de 163 dólares por pessoa no ano.

É de se comemorar. E em outra newsletter posso aprofundar mais como é que eles conseguiram esse feito (pra além do Trump Bump). De qualquer forma, meu ponto aqui é que esse resultado só foi possível porque as organizações não se trataram como concorrentes e sim como aliadas. Uma campanha (a #GivingNewsDay) foi criada para conscientizar as pessoas para a importância de apoiar financeiramente o jornalismo para que ele pudesse fazer seu trabalho: fiscalizar os poderes e ajudar a garantir o funcionamento das instituições democráticas. Não um tipo específico de jornalismo. Apenas jornalismo.

Criar essa cultura – de que o jornalismo é importante para a democracia e que as pessoas precisam participar ativamente disso com seus dinheiros – é essencial para pensarmos na sustentabilidade a longo prazo. Todo mundo que faz jornalismo porque acredita sabe que não há como depender para sempre das Fundações. Durante o período de seis anos nos EUA, 8 de cada 10 dólares de Fundações foram investidos em apenas 25 organizações sem fins lucrativos, as quatro primeiras sendo de jornalismo investigativo. No geral, as organizações eram altamente dependentes das Fundações para quase 70% das doações. Ou seja, se essa bica também seca…

Precisamos das pessoas entendendo a função do jornalismo na sociedade e precisamos que o jornalismo construa mais pontes do que muros. As meninas do Farol trouxeram na sua última newsletter um exemplo de como veículos de mídia grandes e pequenos, nacionais e locais, podem se apoiar. Aqui:

Local Democracy Reporting, uma das frentes do projeto que contrata e treina jornalistas exclusivamente dedicados a cobrir o governo local e outras organizações de serviço público. “Nenhum incêndio, nenhum crime, nenhum tribunal; esses repórteres cobrem principalmente reuniões e eventos comunitários e cívicos”. Os repórteres são contratados localmente pelos veículos parceiros, mas seus salários são pagos pela BBC. Até agora, o projeto produziu mais de 35.000 matérias e o crescimento previsto é de 1.000 a 1.500 histórias por mês.

E aqui, algumas lições de um dos participantes do projeto:

Jeremy Clifford, editor-chefe da Johnston Press, enumera algumas lições aprendidas quando se trabalha em parceria com outros jornais:

  • Encontre as áreas onde você pode trabalhar em conjunto e construa confiança para que você possa seguir em frente.

  • Reconheça que suas organizações podem competir umas com as outras, mas identifique as áreas em que você pode colaborar.

  • Explore áreas onde, juntos, vocês podem produzir um jornalismo melhor do que se você continuasse separadamente.

  • Além de produzir reportagens, veja os conjuntos de habilidades e pontos fortes que sua organização possui e que podem ser compartilhados.

Temos, sub-dimensionando, cerca de 40 milhões de brasileiros vivendo em desertos de informação (Atlas da Notícia), sem acesso a nenhum veículo impresso, online, TV ou rádio. Portanto, esse trabalho de defender a democracia é algo que nós, como jornalistas, nunca demos conta de fazer por completo. E mais: de forma plural, diversa, local. Vamos precisar de suporte. Enquanto o acesso à informação for um privilégio e não um direito, esse papo de defesa da democracia tá todo errado. Jornalistas e jornais são muito bons em cobrar que governos façam autocrítica. Pois aqui mora uma ótima oportunidade para nós jornalistas. Vamos aproveitar?

NO RADAR

 

► A Ponte, site de jornalismo que cobre segurança pública nos estados, teve um aumento de 188% no número de assinantes em um único mês, após o resultado das eleições. O projeto se financia via apoios de fundações, mas também a partir de uma base de apoiadores recorrentes. Parabéns pros 186 novos assinantes. O Buzzfeed fez uma lista de veículos para apoiar (a maioria da imprensa tradicional, no entanto). E aqui outras opções: Nós, Mulheres da PeriferiaPeriferia em MovimentoAgência Mural e Repórter Brasil.

► A jornalista Brittany Shepherd conta aqui como foi difícil sua experiência como uma das únicas repórteres negras na Casa Branca durante a administração Trump. Aqui um trecho traduzido onde ela avalia o impacto do racismo no acesso às informações: ““Bom” jornalismo na era Trump se tornou sinônimo de acesso. Mas quando você está falando com pessoas que vêem qualquer indício de raça como um caminho para a política de identidade, é quase impossível para um repórter negro ganhar sua confiança. (…) Era mais fácil marcar uma entrevista com especialistas em políticas sobre o Conselho Nacional Espacial do que obter uma reunião com um funcionário da administração de nível médio ou sênior.”

► A Agência Mural de Jornalismo teve uma reportagem traduzida para o espanhol e publicada na Revista Pueblos sobre como a falta de estrutura do transporte público de São Paulo prejudica as pessoas mais pobres da cidade. Uma ótima iniciativa para explicar o Brasil a partir de novas perspectivas.

► Jornalistas e ativistas de Nova Jersey, nos Estados Unidos, conseguiram aprovar uma lei que direciona parte do orçamento do Estado para criação de distritos de informação, numa tentativa de apoiar iniciativas de jornalismo e comunicação locais. Uma verba de R$ 5 milhões foi aprovada para criar um edital, o Consórcio Cívico de Informação. É a primeira iniciativa do tipo no país.

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