O que nos conta o primeiro congresso de jornalistas negras e negros do Brasil?

Diversa

O que nos conta o primeiro congresso de jornalistas negras e negros do Brasil?

02 de junho de 2021

Confira o que rolou e como fazer uma cobertura antirracista

Além de espaço de discussões, o Congresso representou a possibilidade de encontro entre pessoas que inspiram umas às outras e que entendem a força da coletividade enquanto motor para a mudança

 

Gabriel Araújo, jornalista

Olá, pessoal! Meu nome é Gabriel Araújo. Há um tempo, participei do curso Jornalismo e Periferias promovido pela Énois aqui em Belo Horizonte. Gostei tanto que também colei uma segunda vez. Hoje, estou aqui para contar um pouco sobre um congresso nacional de jornalistas negras e negros que ocorreu em maio, de forma on-line. O evento foi promovido pelo Coletivo Lena Santos, do qual faço parte.

Por mais que tenhamos suposições, a nossa identidade, a identidade negra brasileira, ainda não está definida. Essa foi uma das contribuições do jornalista Manoel Soares na abertura do I Congresso Nacional de Jornalistas Negras e Negros, promovido pelo Coletivo Lena Santos entre os dias 14 e 16 de maio de 2021. Manoel, cria da Boca do Rio, periferia de Salvador, presidente estadual da CUFA, a Central Única das Favelas, no Rio Grande do Sul, e repórter e apresentador da Rede Globo, ainda propôs uma hipótese. Já que a nossa identidade não está plenamente constituída, talvez seja uma das responsabilidades dos meios de comunicação fazer com que as pessoas negras deste país se reconheçam enquanto tal.

Não que essa seja uma tarefa simples. “O Brazil não conhece o Brasil”, já cantou Elis Regina uma vez, verso retomado recentemente numa colaboração entre Gloria Groove e Iggy Azalea. Anos de uma farsa proporcionada por um ideário de democracia racial encobriram o racismo à brasileira, aquele que exclui pessoas negras das oportunidades, do mercado de trabalho e dos espaços de escolha, e ainda ousa valorizar a meritocracia individual para justificar o sucesso e ascensão de homens brancos e, em sua maioria, ricos. Essa desigualdade, que afeta a sociedade brasileira como um todo, certamente também se reflete no jornalismo e na cobertura noticiosa que hoje temos no país.

Acredito que essas foram algumas das bases lançadas para que justificássemos, para nós mesmos, a importância e a necessidade de realizar um congresso que evidenciasse a atuação de jornalistas negras e negros na imprensa brasileira. Talvez essa ideia estivesse presente em nossa própria constituição enquanto grupo. Formado ao fim de 2019, o Coletivo Lena Santos é, de certo modo, consequência da pesquisa de duas jornalistas mineiras – Márcia Maria Cruz e Edilene Lopes – que, a convite da professora Laura Guimarães Corrêa, da UFMG, escreveram um capítulo para o livro Vozes Negras na Comunicação. O objetivo do texto era discutir, a partir da visão da própria imprensa, “como a experiência da negritude pauta a atuação nas redações em Minas Gerais”. E, nesse processo de levantamento dos nomes de profissionais negros que atuavam no jornalismo mineiro, foi-se construindo uma rede de afeto e aquilombamento que, hoje, construiu e constrói o nosso coletivo. 

O Congresso foi o passo seguinte. Uma vontade de tornar públicas as discussões que já fazíamos enquanto coletivo e de potencializar, com a presença de convidados de diversas regiões do país, reflexões em torno das práticas que efetivam um jornalismo antirracista, das presenças e ausências na cobertura da imprensa brasileira, e dos desafios e conquistas que exemplificam a atividade diária desses profissionais. Em respeito às recomendações sanitárias do momento, sabíamos que não seria possível fazer aquela abertura com samba e boa comida no quintal de Zora Tikar Santos, irmã da jornalista que nomeia nosso coletivo, que leu uma linda carta endereçada a ela em nossa primeira transmissão. Por isso, desde as primeiras reuniões por videoconferência entre os membros da comissão organizadora, entendemos que esse seria um congresso on-line, e trabalhamos para que, com a dita eliminação das barreiras físicas, pudéssemos criar uma programação que reunisse e interessasse pessoas de todas as regiões do Brasil.

Em três dias de evento, compartilhamos nove mesas com 37 nomes, reunindo profissionais do Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, oriundos de 22 veículos de comunicação diferentes, sejam eles de pequeno, médio ou grande porte. A diversidade foi a marca do evento, que abrigou discussões em torno do telejornalismo, do jornalismo esportivo, da comunicação em vilas e favelas, das mídias negras que surgiram há pouco no Brasil, e das trajetórias dos que abriram caminho para que hoje estivéssemos falando sobre isso. 

Pois, como Maju Coutinho bem disse nas boas-vindas do evento, trabalhando o conceito de ubuntu a partir das formulações de Aza Njeri, cientista do verbo, “se eu sou porque nós somos, significa que somos únicos na diversidade de existir”. Provavelmente pela certeza disso, todos e todas estavam tão emocionados na mediação e na participação de cada uma das mesas, não contendo as lágrimas em alguns casos. Afinal, além de espaço de conversa, trocas e discussões, o Congresso representou também uma possibilidade de encontro entre pessoas que inspiram umas às outras, que se espelham em trajetórias e propósitos, e que entendem a força da coletividade enquanto motor para a mudança. 

Mais do que respostas, creio que o Congresso lançou perguntas e provocações. Pois o problema, como a jornalista Flávia Oliveira ressaltou em conversa conduzida por Edilene Lopes, não está apenas na ausência de jornalistas negros nas bancadas dos grandes jornais. Isso nos lembra que não podemos cair nas armadilhas da representatividade, da pessoa negra única ou das presenças vazias que estão ali apenas para responder a editorias pouco interessadas numa evolução. O processo de revisão do jornalismo brasileiro enquanto atividade compreende abarcar uma mudança que é de estrutura: de investir na diversidade de fontes para a construção de uma reportagem, de abolir os estereótipos em torno das populações negras, quilombolas e indígenas, de valorizar diferentes modos de se contar uma história e de fazer com que diferentes histórias sejam contadas.

Ainda, garantir a diversidade também significa fazer com que as minorias tenham condições – financeiras, sociais e de saúde, seja ela física ou mental – para permanecer nesses espaços de produção. Como refletiu Arthur Bugre, da Rádio UFMG Educativa, durante a mesa de encerramento, ao considerar a sua experiência enquanto jornalista negro e trans, “o mundo não foi pensado levando a gente em consideração”. Para girar essa chave, portanto, é importante fazer concessões e entender, sinceramente, as necessidades de cada grupo. E aqui cito novamente Manoel Soares: “a grande sacada para que a evolução humana aconteça é aprender a reconhecer privilégios”. Quiçá, aí está o pulo do gato. Em nosso primeiro manifesto público enquanto coletivo, escrevemos que “não existirá avanço se não houver a presença de jornalistas negras e negros nas redações”. Talvez essa frase precise de uma breve reformulação: o avanço somente irá acontecer quando pessoas negras, conscientes de sua racialidade e da diversidade que conforma nosso país, ocuparem postos de poder e espaços de decisão. Uso o plural de propósito. Pois esse trabalho de formiguinha só é bem feito quando é feito em conjunto.

Lembro do que disse Ethel Corrêa na mesa Enegrecendo a tela: profissionais negros no telejornalismo: “a Lei 10.639 ajudou o Brasil a se enegrecer”. Para traçar uma ponte entre as reflexões, ouso dizer que tanto a 10.639, que dispõe sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, quanto a 12.711, a chamada lei de cotas no ensino superior, colaboraram no processo de encontro e reconhecimento entre o Brasil e o Brasil. Com os passos dos que nos antecederam, já avançamos bastante nos esforços para a construção dessa identidade. Mas sabemos que ainda há um longo caminho a ser percorrido.

Confira 5 aprendizados do I Congresso de Jornalistas Negras e Negros 

  1. Não basta uma pessoa negra para diversificar a cobertura e os agendamentos de determinado veículo: iniciativas de resistência e avanço nas discussões só são bem-sucedidas quando o esforço é coletivo.
  2. Na mesma lógica, mudanças dessa ordem apenas serão efetivas quando cargos estratégicos de chefia e liderança forem ocupados por pessoas negras, mulheres, LGBT+ ou pertencentes a outros grupos marginalizados socialmente. Imaginem qual Brasil teríamos quando pessoas indígenas ocupassem, em quantidade, os principais veículos de imprensa do país?
  3. A produção e veiculação de pautas mais diversas colabora, mas não resolve o problema: é preciso capacitar profissionais para que as próprias abordagens da atividade jornalística sejam ancoradas em perspectivas plurais de compreensão de mundo.
  4. Para além das reportagens da mídia de massa, existem experiências que têm dado certo: aos trancos e barrancos, portais de mídia negra brasileiros vêm contribuindo para evidenciar as especificidades desse país continental, reforçando olhares próximos para a cobertura do dia a dia.
  5. Sim, a luta antirracista deve ser protagonizada por pessoas negras. Mas isso não invalida a participação ativa de você, pessoa branca, nesse processo de resistência que, afinal, representa uma luta de toda a sociedade brasileira. Indigne-se, cobre os responsáveis, manifeste-se. Juntos e juntas, caminhamos mais longe. 

Quer conferir as transmissões do evento?

Todas as transmissões do Congresso continuam disponíveis no canal do Coletivo Lena Santos no YouTube. E, “como eu sou porque nós somos”, vale trazer o nome das pessoas que colaboraram para que esse evento acontecesse: Bruno Torquato, Etiene Martins, Gabriel Araújo, Gabriella Gonzaga, Júlio Sardinha, Márcia Maria Cruz, Milena Geovana, Nelson Nunes, Queila Ariadne, Rafael Francisco, Sandrinha Flávia e Vinicius Luiz.

Se quiser continuar essa conversa, é só chamar no [email protected]. Bora continuar transformando esse jornalismo que produzimos.

ÉNOIS PELO MUNDO

> Ingryd Victorya tem 20 anos e é uma comunicadora em construção. Foi aluna da turma de 2019 da Escola de Jornalismo Énois, co-autora da terceira edição do Prato Firmeza e co-autora e locutora do Corrupcast. Hoje é pós-graduanda em Neurociência e Comportamento pela PUC-RS, formada em Marketing na Fatec Sebrae, técnica em Multimídia e em Comércio pela ETEC, e em Publicidade e Propaganda pelo ITB. Já se aventurou com produção de eventos, criação de conteúdo, gestão de redes sociais e roteiro para games. Atualmente trabalha com design como assistente de arte na agência Martin Luz e é voluntária como diretora de arte na Associação Brasil Plus Size. Apaixonada por comunicação e pessoas, acredito que tudo foi, tudo que é e tudo que pode ser, depende da nossa capacidade de comunicar. www.behance.net/ingrydvictorya

TRANSPARÊNCIA E IMPACTO

> Na terça-feira, dia 01/06, tivemos o Redação Aberta #22 | Como buscar o equilíbrio emocional após um ano cobrindo a pandemia, com Guilherme Valadares e João Frey, ambos parceiros da Énois. Foi um encontro muito potente, com trocas sobre cuidado e saúde mental, estratégias para as redações se atentarem à saúde de seus jornalistas e práticas de organização na pandemia. Você pode saber como foi esse encontro clicando aqui.

>  Esse mês o financeiro da Énois junto com a R. P. Torres Contabilidade e Gestão para o 3ºSetor LTDA, nossa parceira de contabilidade, realizaram uma formação de finanças pessoais e institucionais, no Café & Afetos. As conversas foram sobre o auxílio emergencial recebido pela Fundação Cargil no início do ano, como funciona a parte jurídica e as prestações de contas da Énois, como organizar as burocracias do MEI e quais estratégias cada um usa para suas finanças. As organizadoras foram Bruna Gonçalves, nossa coordenadora financeira e Natália Amorim, que cuida da nossa conta na Torres. 

> Vamos iniciar dois novos projetos da Énois. O Sala de Redação é um espaço virtual de encontro e mentoria entre jornalistas, repórteres e comunicadores locais da rede da Énois para produção e distribuição conjunta de investigações e reportagens sobre seus territórios. Os participantes serão escolhidos através dos programas Diversidade nas Redações e Jornalismo e Território. Também iremos iniciar o Mapeamento Cultural Periférico, que pretende mapear e contatar coletivos de comunicação e jornalismo nas regiões periféricas de São Paulo, compreendendo como as periferias buscam, sistematizam e distribuem informação em seus territórios. 

Um salve e muito obrigada a todes apoiadores da Énois ♥

Ana Luiza Gaspar, Amanda Rahra, Andrei Rossetto, Angela Klinke, Anna Penido, Alexandre Ribeiro, Bernardo de Almeida, Camila Haddad, Carolina Arantes, Claudia Weingrill, Daniela Carrete, Danielle Bidóia, Danilo Prates, Darryl Holliday, Felipe Grandin, Fernanda Miranda, Fernando Valery, Flavia Menani, Fred Di Giacomo, Frederico Bortolato, Giuliana Tatini, Guilherme Silva, Gilberto Vieira, Harry Backlund, Iano Flávio,  Juliana Siqueira, Júnia Puglia,Kelayne Santos, Larissa Brainer, Luciana Stein, Maire da Silva, Marina Dayrel, Mauricio Morato, Natalia Barbosa, Nataly Simon, Patrícia Grosso, Rodrigo Alves, Rafael Wild, Renata Assumpção, Ricardo Feliz Okamoto, Susu Jou, Tatiana Cobbett, Thais Folego Gama, Vanessa Adachi, Vinícius Cordeiro e Vitor Abud.  Se você quer ver seu nome aqui, basta se tornar nossa apoiadora ou apoiador: benfeitoria.com/enois

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