Diversa

O mito da Objetividade

16 de junho de 2021


Ao invés de nos perguntarmos que conhecimentos precisamos ter, poderíamos nos perguntar que conhecimentos somos

 

Vicente Góes, psicólogo, consultor e pesquisador

Meu contato com o jornalismo vem da família e da minha experiência como um dos coordenadores da Escola de Jornalismo da Énois, de 2016 a 2019. Minha formação em psicologia e pesquisa em Transdisciplinaridade haviam sido solicitadas para  construir uma pedagogia que integrasse a dimensão do sujeito, que desse um suporte para os atravessamentos de vida das e dos jovens. Hoje sou psicólogo, consultor e pesquisador. Por causa de uma apresentação no 3º Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, pude imergir no jornalismo e me surpreender ao reconhecer nesse ofício uma ilustração perfeita para um aspecto crucial da mudança de perspectivas que o mundo está vivendo: a complexidade.

Já sabemos que a pandemia mostra todos os problemas sociais de forma mais escancarada e reconhecemos como somos afetados de todos os lados. A complexidade pegou todo mundo, mesmo considerando a evidente desigualdade de vulnerabilidades. Quando é difícil começar a descrever um caminho único que explique onde chegamos, no macro e no micro, da polarização e do avanço da extrema direita, à perda de amigos e familiares, seja a economia global e o Paulo Guedes que afetam o preço do arroz ou pelo esgarçado no peito de uma perda de sentido – isso é complexo.

E quando a treta é complexa não adianta buscar causas. Na verdade, o que está em crise não é uma coisa que podemos entender. Se pudéssemos, não seria uma crise. Porque essa crise é uma crise de Tudo. É uma crise da própria maneira em que percebemos a realidade. 

Como um peixe não pode ver o mar, não vemos a nossa própria maneira de pensar. Podemos flagrar nossos valores com muito mais facilidade do que flagrar nossa lógica. Quando um problema complexo chega, a primeira coisa que fazemos é colocar o mesmo pensamento que criou o problema para solucioná-lo. Buscamos o “novo”, a solução, mas não atentamos para a natureza básica das crises – elas nos transformam, e se solucionamos crises sem transformação, bem, não a solucionamos de todo.

Isso que fundamenta nossa maneira de pensar, que também fundamenta nossa maneira de perceber e de representar o mundo, é um paradigma. Paradigmas são ecossistemas de narrativas e práticas que ao mesmo tempo se influenciam umas às outras e mantêm uma mesma lógica.

Como parte do mesmo paradigma, algo do jornalismo reflete a metodologia científica, que envolve separar sujeito e objeto, contexto vivido e técnica, processos de redução (reduzir o todo em partes) e generalização (inferir o todo por meio da razão lógica). E isso em si não é a fonte do mal. Temos nossos smartphones, internet, vacina!, urnas eletrônicas, SUS… a crise vem quando alguma coisa que deixamos de fora dessa realidade produz desafios que não conseguimos resolver dentro da lógica das nossas narrativas e práticas. É quando chega a complexidade, e precisamos entender outra maneira de pensar, de perceber e de representar a realidade.

Essa neutralidade científica é criada, e através dela se tem a crença em uma realidade-objeto. Isso tem uma implicação muito séria que passa despercebida: a neutralidade invisibiliza a norma. Por exemplo, o uso de inteligência artificial para identificação de criminosos nos EUA. Um programa de computador identifica rostos de pessoas nas câmeras de segurança e dá um match com a base de dados de criminosos procurados. Mas os programadores “neutros” não questionavam se a base de dados já não seria tendenciosa mostrando uma quantidade muito maior de pessoas negras. Além disso, o programa identificava com muito maior acuidade as nuances entre rostos brancos, ou seja, a incidência de erros de identificação era muito maior na população negra. Inescapavelmente, ao buscar a neutralidade no método, separando o saber do ser, deixamos de olhar como realidade a experiência, o sentido, o contexto. O método pode ser frio, mas o cientista, o programador, os tomadores de decisão não são, e não há chance de fazerem suas pesquisas e tecnologias sem partirem da naturalização de uma visão de mundo – racista, no caso.

Uma perspectiva interessante da complexidade é que ela transforma objetos de estudo em processos e, no caso de sistemas vivos e ainda mais sistemas humanos, processos de linguagem. Ao invés de pensarmos a realidade como algo que é, pensamos a realidade como algo que emerge das relações. Não evoluímos para perceber a realidade, porque nosso sistema de perceber se desenvolveu apenas em relação. A vida evoluiu e com ela nossa linguagem, e com esta nosso conhecimento e nossa prática, a partir da interação recíproca entre nossas estruturas e nossas experiências, sempre através de relações.

Mas na realidade-objeto, definimos fatos como algo inteiramente independente da nossa experiência, que poderiam ser descritos de forma objetiva. A relevância do fato não tem nada a ver com sua objetividade, mas com seu sentido. E o sentido é construído na linguagem, no contexto, emerge das relações, ou seja, é complexo.

Por isso compreender a complexidade pode fazer toda a diferença na formação de jornalismo. Para lidar com problemas complexos – que têm um impacto direto nas e nos jornalistas – precisamos entender a realidade como algo sustentado por nossas narrativas e nossas práticas, de forma sistêmica. Isto é, de todos os lados, em todas as escalas. E não só isso, mas também e, principalmente, compreender a incerteza e a experiência subjetiva implicada na vida. 

Objetividade? Temos, nos contextos não complexos ou na linguagem matemática. Se estamos falando de sistemas vivos, e da comunicação humana, da construção do conhecimento e de uma ética relacional, a objetividade é apenas um fio de um tecido que se costura a si mesmo com todas as outras qualidades de percepção da nossa experiência de mundo. Daí podemos pensar uma mudança de “prática” jornalística para “experiência” jornalística. O caráter aberto da experiência em relação ao conceito de prática leva a uma possibilidade de adaptação das estruturas – um contexto complexo não para de se adaptar, de emergir em novos padrões e de ampliar fluxos de informação.

A complexidade nos permite mudanças sem que dependamos do entendimento anterior do que está acontecendo. Ganhamos o entendimento na experiência, na exploração do contexto, na conexão com os agentes do contexto. Isso é ao mesmo tempo angustiante e esperançoso. 

Angustiante porque estamos profundamente condicionados a planejar nossas ações com base nas certezas do passado e encontrar a incerteza é confundido com enfrentar a insegurança. 

Esperançoso porque se aprendermos a fazer essa dança entre estruturas que nos organizam e experiências que transformam essas estruturas, podemos usar a comunicação como o próprio processo de transformação da realidade. Assim, o jornalismo não é o que “informa uma visão de mundo”, como se antes viesse a informação e depois uma visão de mundo que vem dela. O jornalismo é a ação, a manifestação operativa de uma visão de mundo. Como linguagem, age enquanto comunica, como comunica, não a partir do que comunica, apenas como conteúdo.

Não. O jornalismo não é para, é com e enquanto. E o conhecimento dessa experiência é o saber vivo da e do jornalista, que então tem a responsabilidade de saber de si e do grau de complexidade que sua narrativa expressa. O foco no conteúdo é deixado pelo “peri-foco” nas relações, qualidades, dinâmicas, premissas e afetações pessoais do trabalho na pessoa (jornalista, entrevistadas e entrevistados, editoras e editores, audiência, etc). Se as experiências das e dos jornalistas não tensionarem a mudança dos próprios processos e premissas do jornalismo, o sistema perde a capacidade de adaptação, literalmente perde inteligência.

Se a ciência ao produzir ciência, produz cientistas, o jornalismo ao produzir notícias produz jornalistas. O jornalismo não pode ser separado da e do jornalista. Estes podem se esforçar em ser neutros com o melhor de seu rigor profissional, mas a constelação de seus fatos em histórias e a constelação de suas histórias em narrativas não podem deixar de constituir um espelho de sua própria experiência de mundo. Ao inserir narrativas construídas de experiências e perspectivas diversas, estamos informando o sistema de diferentes maneiras, criando um referencial cognitivo mais integrado e plural.

A e o jornalista, como superfície de revelação da sociedade, o que diz e como se manifesta, é uma plataforma. É uma interface sensível pela qual emerge um discurso coletivo, uma representação coletiva de realidade. É um catalisador de nexo. Mas essa catalisação é recíproca e há um perigo em deixar que discursos coletivos estruturem nosso sentido de mundo e de nós mesmos e mesmas. De um lado, um ímpeto crítico e questionador organiza uma maneira de estar no mundo, onde não estão sozinhos e sozinhas, se amparando em uma força de resistência contra a opressão, seja lá que ideia tenham de opressão. De outro, se prendem ao mesmo paradigma dentro do qual operam as disputas de poder que lemos nos jornais. A construção de um discurso coletivo atravessa nossa experiência direta com o mundo – experiência sensível, afetiva, estética, simbólica, enfim, ética e mesmo cosmológica. Nossa experiência é singular, tecida por nuances e especificidades próprias, contradições e complexidades próprias. Ser traduzida por um prisma único como a representação de uma única lente social pode planificar violentamente nossa autenticidade em troca de pertencimento, reconhecimento e valorização de si frente a um grupo de pares. 

E essa elaboração do mundo e de si, intimamente ligada à perspectiva coletiva, acontece no – e absorve o – tempo do mundo. O jornalismo acontece em tempo real. Considerando a tarefa de aprender como fazer linguagens que traduzam e comuniquem realidades interna e externa, individual e compartilhada, natural e cultural, o jornalismo é um aprender em tempo real, cuja “gramática” (paradigma de realidade) o obriga a articular a mesma lógica que cria os problemas narrados. Obriga?

O estágio de conhecimento que temos agora, mesmo no seio da ciência, indica com clareza o fim do mito da objetividade. Mas esse fim não vem com a proposta do “novo”, mas com uma transformação da maneira como percebemos tudo. O convite é para incluirmos o sujeito, a subjetividade, que em uma forma complexa pode-se dizer também, a pessoa, o Ser. Já somos, complexos, já somos transdisciplinares. Sacar esse “novo” tem mais a ver com sacar o que já somos e dar estruturas para isso. No jornalismo, e no universo profissional como um todo, isso significa rever os processos de trabalho, sacramentar o espaço de elaboração do pensamento, da percepção de si, das relações, rever as linguagens e governanças. Esses movimentos não vêm a princípio de valores progressistas, mas de um conhecimento experiencial (e científico) sobre a complexidade. Buscando o pensamento complexo, encontramos inadvertidamente as coisas como elas já são, sem mitos, ambíguas, contraditórias, incertas, e também coerentes, identitárias, interdependentes. Mas agora temos meios de aprender com essa realidade – juntes.

Caso você queira seguir sobre a complexidade, escreva para: [email protected]

04 Práticas interessantes para exercitar o pensamento complexo:

  • Metáforas: são ferramentas de linguagem que orientam nossa percepção das coisas. Dizer de uma reunião de trabalho: “nós nos defendemos bem”, “fulano detonou”, “ganhamos o dia” usam como metáfora a guerra e a batalha. A partir dessa metáfora se manifestam atitudes e disposições, muitas possibilidades são pré-determinadas aí. Poderíamos pensar no trabalho como “conseguimos sincronia”, “a composição saiu bem”, “algo está fora do tom”, induzindo outras associações e percepções. O ponto é reparar esses movimentos e deslocá-los – a complexidade envolve metáforas diferentes em conversa ou disputa.
  • Olhar para a própria identidade, trajetória e relações à luz do que se investiga: toda linguagem é cheia de viés, impregnada de identidade e referências ligadas a uma biografia. Não podemos escapar dessa influência, mas podemos (e devemos) conhecê-la. O jornalista que usa a si mesma/o como lente pode tanto se proteger melhor do impacto de uma pauta sensível quanto dar maior abertura para ângulos diferentes. Cada trabalho se costura (complexidade = tecido junto) com a construção da pessoa que jornalistas são.
  • Buscar contradições como ponto de partida: não como becos sem saída. Todo sistema complexo é contraditório por natureza. Ele trabalha constantemente para se manter e para se transformar ao mesmo tempo. Seja em nós mesmos ou nos contextos que investigamos, a complexidade nos convida a exercitar a percepção das contradições para podermos ir além da lógica binária, já que não cobramos a realidade ou a verdade de um resultado homogêneo e podemos perceber a ligação entre diferentes contextos.
  • Estratégias que partem da prática: planejar não é a melhor maneira de lidar com complexidade. O que informa uma estratégia na complexidade são relações e a experiência, já que a combinação das soluções do passado não pode criar novas soluções. Sistemas vivos evoluem assim, isso é, adaptando suas estruturas e seus processos de acordo com as mudanças do ambiente e, neste mesmo movimento, criam o ambiente. Ou seja, uma mudança social depende não apenas das narrativas e dos discursos, mas também da experimentação de novas estruturas e processos que estejam escutando as necessidades do trabalho – sejam técnicas, processuais, institucionais, afetivas, identitárias, criativas, etc. Na complexidade, a adaptação depende de estruturas que aprendem com a experiência

ÉNOIS PELO MUNDO

> Nosso ex-aluno, Alê Ribeiro, está dando aulas de inglês gratuitas para pessoas de quebrada! O projeto tem como base o método Lexical + Bad English = Belonging (Pertencimento), isso quer dizer que as aulas serão preenchidas de frases prontas que de tanto falar grudam na cabeça, conteúdos sobre negritude, além do entendimento de que para aprender precisamos nos sentir pertencentes ao conhecimento. O Bad English é aceitar que não somos perfeitos, e não iremos falar perfeito! Você pode acessar o post do Alê no instagram e ter mais informações sobre as inscrições para as próximas turmas.

> Camila da Silva, nossa ex-estudante da Escola de Jornalismo, publicou a matéria “Instável: um ano de ensino remoto nas escolas estaduais de São Paulo”, pela Agência Pública. Parabéns, Camila! Matéria importante para a gente se conscientizar dos impactos da pandemia na educação.

TRANSPARÊNCIA E IMPACTO

> Sanara Santos, nossa produtora-chefe, e Nayra Lays, ex-estudante da Escola de Jornalismo, participaram do primeiro evento do Atlas da Juventude. A Sanara foi mediadora da mesa Vozes da Juventude, que trouxe as tendências e comportamentos das juventudes, principalmente a negra e a periférica. A Nayra foi convidada como cantora, e o show foi lindo, potente e transformador! Muito orgulho de vocês, meninas! Clique aqui para conferir a live com as duas participações.

> Esse mês tivemos o Redação Aberta #22 – Como buscar equilíbrio mental após um ano cobrindo a pandemia, foi um encontro muito bonito. Além das falas dos convidados, Guilherme Valadares e João Frey, as participantes interagiram e dividiram as suas estratégias de autocuidado. Você pode acessar o conteúdo do evento clicando aqui! E no dia 06/07, teremos o Redação Aberta #23 – Como cobrir e fiscalizar atividade policial. Você pode salvar o evento e clicar em “lembrar-me”, no nosso eventbrite.

Um salve e muito obrigada a todas as apoiadoras e todos os apoiadores da Énois ♥

Ana Luiza Gaspar, Alessandro Junior, Amanda Rahra, Andrei Rossetto, Angela Klinke, Anna Penido, Alexandre Ribeiro, Bernardo de Almeida, Camila Haddad, Carolina Arantes, Claudia Weingrill, Daniela Carrete, Danielle Bidóia, Danilo Prates, Darryl Holliday, Felipe Grandin, Fernanda Miranda, Fernando Valery, Flavia Menani, Fred Di Giacomo, Frederico Bortolato, Gabriel Araújo, Giuliana Tatini, Guilherme Silva, Gilberto Vieira, Harry Backlund, Iano Flávio, Juliana Siqueira, Júnia Puglia,Kelayne Santos, Larissa Brainer, Luciana Stein, Marina Dayrel, Maire da Silva, Mauricio Morato, Natalia Barbosa, Nataly Simon, Patrícia Grosso, Patty Durães, Rodrigo Alves, Rafael Wild, Renata Assumpção, Ricardo Feliz Okamoto, Susu Jou, Tatiana Cobbett, Thais Folego, Vanessa Adachi, Vinícius Cordeiro e Vitor Abud. Se você quer ver seu nome aqui, basta se tornar nossa apoiadora ou apoiador: benfeitoria.com/enois

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