Por que seguimos alimentando “casos policiais”?

Diversa

Por que seguimos alimentando “casos policiais”?

14 de julho de 2021

 

Diante de tantos crimes, precisamos escolher quais iremos contar. Banalizamos a análise sobre a violência e brutalizamos as pessoas.

 

Alice de Souza, coordenadora de sistematização da Énois

Oi, pessoal. Como vocês estão?

Neste mês de julho, escolhemos trazer para as nossas conversas aqui dentro da Énois um tema mobilizador de paixões, multidões e erros no jornalismo: a cobertura das ações da polícia. No momento em que escolhemos pesquisar metodologias e ferramentas sobre isso, ainda nem borbulhava nas nossas cabeças a chacina do Jacazerinho, o assassinato de Kathlen Romeu ou os tiros disparados pela Polícia Militar de Pernambuco durante o #29M, que resultaram na perda de visão de duas pessoas. 

Naquele momento, a pauta surgia de um movimento provocado pós-assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, a revisão sistemática da cobertura das ações policiais pelos veículos estadunindenses, uma espécie de movimento de autocrítica e reparação de anos de uma cobertura que privilegiava uns discursos e invisibilizava outros. O “Caso Floyd”, como gostamos de chamar todos os crimes que ganham visibilidade – ou os quais nós, jornalistas, damos visibilidade – foi base para parte da imprensa de lá repensar como, a partir da cobertura policial, estava fortalecendo o racismo, a criminalização dos corpos e o punitivismo estatal.  

Por aqui, o que nos levaria – em definitivo – ao mesmo caminho? Do dia em que decidimos pautar o tema na nossa Caixa de Ferramentas, em uma edição anterior da Diversa e também no último Redação Aberta, até hoje, fomos atropeladas por mais um caso. Desta vez, o “Caso Lázaro”. Em meio a tantas tragédias, o jornalismo encontrou espaço – e quanto espaço – para narrar um país mobilizado por uma prisão. 

A construção de mais um “caso”

Uma das primeiras coisas que aprendemos nas graduações de jornalismo são os critérios de noticiabilidade. Escolher o que vamos contar, como vamos contar e por que o faremos parece uma decisão lógica e objetiva. Mas como já contamos aqui também na Diversa, a objetividade é um mito que se constrói quando decidimos, também, simplificar a complexa realidade. Na cobertura policial, a busca do furo e da manchete por vezes contempla a procura do extraordinário que justifique a pauta. 

Isso tem como premissa, muitas vezes, um lugar comum e simplista: diante de tantos crimes, precisamos escolher quais iremos contar. Banalizamos a análise sobre a violência e brutalizamos as pessoas. Ao mesmo tempo em que caçamos um fato espetacular, seja o crime com mais mortes ou a morte mais perversa, achamos a “anormalidade” do ser que o comete. Adjetivamos, para dar ênfase à disrupção daquele “caso”. Encaixamos um enredo para segurar a pauta por dias, como se estivéssemos diante de uma ficção. 

“Serial Killer”, ”satanista”, “’maníaco”, “psicopata” foram alguns dos adjetivos dados pelo jornalismo – ou adotados gratuitamente pelo jornalista a partir do discurso oficial da polícia – a Lázaro Barbosa ao longo dos 20 dias em que esteve em fuga pelo Distrito Federal. Criamos uma novela, como explicou o professor Rogério Christofoletti em um dos textos que questionam a cobertura brasileira da busca por Lázaro, escrito e publicado pela Ponte Jornalismo.

Cada adjetivo desse carrega consigo sua própria carga de preconceitos, que a lente da espetacularização, ou mesmo da compreensão da cobertura policial como uma cobertura sobre crimes e não indivíduos e suas relações, não nos deixa enxergar. Recorremos ao “pânico satânico”, que descreve um ritual racista e ignorante de intolerância religiosa, como pontuado em outro texto-chave para refletir sobre o papel da imprensa nessa cobertura, escrito por Fabiana Moraes, para o The Intercept Brasil. O “Caso Evandro”, que virou série documental para a Globoplay recentemente, é um dos maiores exemplos disso. 

Patologizamos o crime sem um diagnóstico prévio. Olhamos pelo viés editorial comercial, para perceber tardiamente que impulsionamos uma narrativa onde há mais erros que acertos. Assim, o jornalismo deixa de pautar criticamente a sociedade para participar da construção social do crime, que ao fim justifica sequências de violações de direitos. 

Um caminho possível

Apesar dos pesares, como mostrou a newsletter Farol, o caso Lázaro abriu um precedente. Em meio à cobertura, diante da pressão dos movimentos sociais e dos desgastes nas redes, veículos como o G1 e UOL se posicionaram com pedidos de desculpas pela reprodução acrítica do discurso policial, com conteúdos de incitação de ódio e intolerância religiosa (além deles, outros veículos se referiram a Lázaro como “maníaco de Brasília” e publicaram títulos falando sobre “rituais malignos, assassinatos e psicopatia”, entre outros adjetivos).

O G1 havia publicado um título no qual fazia referência a rituais e bruxaria. Pediu desculpas em uma nota de redação, na qual diz ainda que “Após esse alerta, o G1 apagou os posts em suas redes sociais, tirou os destaques no portal e atualizou esta reportagem para modificar o título e o texto. Também ouviu lideranças religiosas sobre as afirmações do delegado e sobre as imagens divulgadas pela polícia”. O UOL havia mencionado, reproduzindo a fala da polícia, a expressão “força satânica”.

De imediato, ao lembrar das pesquisas que fiz em relação à mudança na cobertura estadunidense após o “caso George Floyd”, fiquei me perguntando: será que nós, jornalistas brasileiros, podemos abraçar esta como a nossa oportunidade de rever, enfim, a cobertura policial?

Para nos ajudar, juntei aqui alguns aprendizados, extraídos das leituras dos textos mencionados acima, sobre como refletir criticamente sobre a nossa cobertura enquanto acompanhamos uma ação policial:

Preste atenção no que dizem as fontes. Às vezes, na correria do dia a dia e da cobertura, reproduzimos na íntegra algumas aspas de familiares de vítimas, conhecidos, testemunhas e agentes da polícia que reproduzem estereótipos, preconceitos de raça, classe, gênero e etnia. Pense duas vezes na necessidade de visibilizar aquela forma de contar um ocorrido e sempre avalie que, para publicar o conteúdo, caso seja necessário, será preciso dar contexto. 

Pautar os discursos. Ao reproduzir conteúdos preconceituosos ou deturpados da cobertura de uma operação policial, a sua reportagem pode estar contribuindo para amplificar discursos de ódio que legitimam políticas de exclusão e segregação social. Pense sempre em quem pode se aproveitar, direta ou indiretamente, da sua abordagem e se isso irá vulnerabilizar ainda mais alguns segmentos sociais.

Cuidado com manchetes declaratórias. Manchetes como “Fotos mostram que casa de Lázaro Barbosa, suspeito de Chacina na Ceilândia, tem itens que indicam bruxaria e rituais, diz polícia”, reproduzem indiretamente intolerância religiosa embutida na declaração de um órgão oficial. Isso pode credibilizar essa abordagem.

O que é normal? Classificar pessoas como “monstruosas, dissidentes, folclóricas, esquisitas, incivilizadas, exóticas”, como falou Fabiana Moraes no texto do The Intercept Brasil, mede os indivíduos por uma régua de “normalidade” definida pelo jornalista. Por meio desse mecanismo, o jornalismo ajuda a classificar condutas desviantes na sociedade, e incitar o ódio ao indivíduo que comete um delito.

A criação de um crime. Ao escolher que histórias contar e como contá-las, o jornalismo pode estar definindo que crimes irão existir perante a sociedade e quais não. Visibilizar um caso é dar respaldo para o julgamento social sobre ele, já que as condutas delitivas também são gestadas pela reação a elas. No caso Lázaro, por exemplo, o “serial killer” só existiu porque foi introjetado na mente da audiência.

Realidade não é ficção. Quando as operações policiais demoram mais de um dia e há necessidade de suítes, precisamos escolher o que iremos contar. Não há necessidade de pautar qualquer assunto sobre o tema, apenas para ter uma matéria, nem de ficar procurando personagens envolvidos na operação, como se ela fosse uma trama. Até que ponto vale destacar a vida, história de vida ou característica física de um policial envolvido nas buscas, por exemplo? Questionamentos como esse devem ser naturalizados nas reuniões de pauta, para construir um diálogo entre editores e repórteres na cobertura.

Bom, esses foram alguns aprendizados que tirei das leituras de alguns textos sobre a cobertura do caso Lázaro. Espero continuar esse assunto com vocês no meu e-mail, [email protected]. Até mais!

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> No final de Junho, a Abaré Escola de Jornalismo publicou o segundo episódio do seu podcast “Não Deixa Em Off”, onde falam sobre a falta de diversidade de gênero, racial e de sexualidades nas redações jornalísticas em Manaus. Os convidados foram Nicoly Ambrósio, repórter da Amazônia Real, e Paulo Trindade, fundador do Mídia Ninja e pesquisador.

> Jamile Santana, gerente de jornalismo na Énois, participou do podcast Margem Jornalismo. Ela falou sobre a importância da diversidade no jornalismo e nas redações, dados e transparência pública. Na entrevista o Pedro pediu para contar um pouco sobre este trabalho da Énois. Ouça a conversa no Spotify.

> A Alice de Souza, que assina esta edição da Diversa, está lançando o livro “O Grande Boato”, que reúne reflexões sobre o ecossistema da desinformação e casos de impacto das mentiras no nosso cotidiano. O livro, que pode ser encontrado na Amazon em formato e-book, é fruto dos estudos de mestrado dela na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).  

> Errata: na última Diversa divulgamos a matéria da Agência Mural sobre como a Covid-19 pode ter agravado questões de saúde mental entre adolescentes, creditando apenas o Lucas Veloso, porém a matéria foi feita também por Ana Beatriz Felicio.

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