07 de Agosto de 2020
Por que realmente as pessoas não se envolvem quando alguma criança está em estado de vulnerabilidade?
Eu nunca parei para pensar em uma sociedade para as crianças.
Minha infância foi perturbada por alcoolismo e violência doméstica. Esses eram os principais atravessamentos que tive durante parte da minha vida, ou pior, na fase mais importante para minha formação, a primeira infância – o período da formação do eu.
Construíram em mim uma forte camada de traumas.
Na minha mente havia confusão e choro.
Desde criança eu já me questionava o porquê de tudo aquilo, de todas as cenas que enfrentei e o porquê de estar sendo maltratada.
Lembro que afirmava pra mim mesma que, quando fosse adulta, não deixaria aquilo acontecer nunca mais. E pensei assim durante anos. Me tornei mãe precocemente. Foi e ainda é um desafio. Aos 14 anos tive minha filha. Aos 17, saí de casa porque não aguentava mais toda aquela situação.
Quando entrei na Énois como residente, começamos a pesquisar sobre primeira infância e adolescência para organizar oficinas de formação para jornalistas e comunicadores cobrirem esses temas em seus territórios – pensando também no período eleitoral. E isso me mostrou de forma objetiva a importância do tema.
Tivemos encontros com muitos profissionais que explicaram cada processo de formação da criança psicologicamente, socialmente, seja com questões de gênero ou raciais. Todo este processo me despertou como mãe, a olhar minha cria com mais paciência, sensibilidade e como ser de opinião. Passei a ouvi-la mais, saber quais as percepções dela em relação ao mundo. E como comunicadora, passei a pensar em como cobrir o tema.
Nos veículos tradicionais, sempre via matérias falando sobre violências e dados, mas que não traziam soluções para quem vivencia as experiências na prática, ou que políticas públicas existem para nos apoiar a resolver essas situações. Talvez porque muitos dos jornalistas que escrevem sobre isso não sofrem com a falta da vaga na creche.
E isso me fez pensar na responsabilidade do jornalismo em relação ao tema. Por que realmente as pessoas não se envolvem quando alguma criança está em estado de vulnerabilidade? Lembro que, por mais que eu e minha mãe fôssemos agredidas e os vizinhos vissem, ninguém se envolvia. Por que aquilo tudo era tão normal? Por que ninguém fazia nada?
Num desses programas de TV que acompanham policiais vi, uma vez, uma mulher ligar para a polícia e explicar que o marido bêbado desligou a energia da casa dela. Ao lado da mulher está seu filho de 9 anos. Quando a polícia chega, essa mulher desiste de resolver o problema e os libera. A criança chora e pede desesperadamente para que os policiais fiquem e o ajudem. No final, os policiais vão embora e o menino permanece no desespero. Eu senti a dor dele porque eu também estive inserida naquele lugar. A cobertura daquele programa é sensacionalista, sem cuidado algum. Em nenhum momento se preocuparam com a criança, só expuseram a família e a violência.
Eu nunca parei para pensar em uma sociedade para as crianças. Mas como assim? Passei por essa e tantas outras violências quando era criança. Sou mãe. E agora, ao olhar para o papel da imprensa nessa reflexão que deveria ser construtiva, que eu tive o despertar da importância das crianças para a formação do coletivo.
Sinto que desprezamos as crianças como se elas não fossem gente. E fazemos isso de baciada na mídia.
Ler jornais ou ver a TV não nos ensina que todos nós somos responsáveis pela infância. Mas se queremos uma sociedade melhor, precisamos priorizar as crianças e construir com elas. Afinal, elas fazem parte do todo.
Glória Maria, residente do eixo de Jornalismo Local da Énois
Aqui vão algumas dicas de como cobrir a infância:
A infância cabe em todas as pautas.
Crianças e famílias são diferentes, não podemos padronizar essas vidas nas matérias que produzimos.
Não há soluções simples para questões complexas. É sempre importante lembrar que há dimensões culturais, sociais, raciais, emocionais e físicas em cada ser. Por isso a importância da educação integral que abrange todas essas áreas.
Se questione: onde estão as crianças? Em quais espaços? E fazendo o quê?
Devemos lembrar que a criança é prioridade (artigo 227 da Constituição).
Há muitas matérias que direcionam infância somente para as mulheres. Mas todos são responsáveis pela infância, inclusive homens e pessoas que não tem filho!
É importante pensar na linguagem. Pra quem você vai distribuir essa matéria? Para que família? Qual o público?
Nesta nova seção, vamos passar a compartilhar o trabalho de jornalistas que passaram pela Escola de Jornalismo da Énois. Quer ter seu trampo divulgado aqui? Escreve pro [email protected] com o assunto “EJ pelo mundo”.
O projeto Fala Perifa está entrando na sua segunda edição (aqui o link com a primeira) e é criação de um grupo de jovens do Capão Redondo, na ONG Interferência, coordenados por Muller Silva, jovem educador que foi um dos primeiros estudantes a participar das formações da Énois em 2009, no mesmo bairro. A revista teve 2600 unidades impressas, todas já distribuídas. Muller, que tem formação em Design Gráfico, criou a oficina com base nas metodologias disponíveis na Caixa de Ferramentas da Énois. Ele participou também, em 2019, das formações Jornalismo e Periferias, organizadas pela Énois em parceria com Abraji e Periferia em Movimento.
► Nenê do zap é um aplicativo que dá assistência para os pais e mães com dicas para acompanhar o desenvolvimento da criança do nascimento até os seis anos, período da primeira infância.
► Pesquisadores que fazem parte do Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância desenvolveram um texto sobre o impacto do desenvolvimento na Primeira Infância sobre a aprendizagem.
► Infância e Internet: “Precisamos incentivar as produções das crianças sobre sua gente, sua memória, seu povo e suas brincadeiras”. Conheça o Portal Lunetas, especializado em matérias sobre a infância.
► Repensando como cobrimos a polícia: após os assassinatos de Breonna Taylor, George Floyd e outros por policiais nos Estados Unidos, jornalistas e redações precisam ser mais intencionais sobre os termos e linguagem que usam ao reportar sobre a polícia e suas ações.
► Jornalistas interessados em praticar antirracismo em seu trabalho diário podem participar deste webinar gratuito em inglês. O National Press Club apresenta o webinar “Como o jornalismo antirracista se parece?” às 11:30 horas (horário de Nova York) no dia 21 de agosto.
► Jornalistas brasileiros e brasileiras podem se inscrever no concurso Stop Slavery Award, da Fundação Thomson Reuters. O concurso tem uma categoria de mídia, aberta a jornalistas que produziram uma matéria de grande impacto, conscientizando e informando a sociedade sobre a escravidão moderna e o tráfico de pessoas.
► Para estimular a cobertura das eleições centrada no que importa para o eleitor e no candidato/a enquanto gestor, foi lançado o Manual Grande Pequena Imprensa de Eleições Municipais. Ele traz informações básicas de políticas públicas, dados e tem a ferramenta Raio-X dos Municípios, que agrega dados das cidades e faz comparações de indicadores com outras do mesmo porte.