01 de Março de 2021
Saiba porque deveríamos fazer como NEXO e Folha
Nina Weingrill
Diretora Operacional
Há dez anos a gente entendeu que precisava criar mecanismos pra garantir que a diversidade sobrevivesse dentro do jornalismo tradicional. Que era preciso hackear as estruturas de poder hegemônicas pra que pessoas diferentes sentassem na mesa onde se tomam as decisões sobre que história a imprensa vai contar.
Não tinha outro jeito de fazer isso a não ser pela educação. Não era uma grande descoberta. Muitas iniciativas e instituições já estavam fazendo isso há décadas: se aquilombando, formando os seus, construindo suas trajetórias. Mas a gente não era desse lugar. Então entendemos que nosso papel era criar pontes entre quem é e quem tá. Foi assim que nasceu a Escola de Jornalismo da Énois, que formou ao longo dos anos mais de 500 jovens de diversas periferias e que hoje ocupam os espaços que sonhávamos lá atrás.
Alê Ribeiro, ex-estudante da Énois, segurando a carta de aprovação da bolsa de estudos em uma universidade de Berlim, e também seu livro “Reservado”. A foto é capa da sua primeira coluna na Ecoa Uol. Foto: Lucas Sampaio/ Divulgação
Mas essa costura, que parece simples de ser feita, agora que os debates identitários ganharam mais relevância, não era nada simples. Não preciso contar pra ninguém que vivemos em um país fundado em estruturas racistas. Quando a gente sentava na mesa com os editores de jornais pra formatar parcerias de produção entre jovens jornalistas das periferias e redações, a sensação era como se estivéssemos pedindo por caridade.
Entender que um bom jornalismo se faz a partir de perspectivas diferentes, realidades distintas e trajetórias únicas não era consenso. As pessoas queriam participar, mas não entendiam que o que estávamos buscando era estrutural. E que como toda mudança estrutural, gera incômodo. Já ouvi, por exemplo, de uma jornalista influente, que o que eu estava querendo era fazer justiça social. Já ouvi também, de um diretor, que sua redação era diversa porque cobriam todos os partidos políticos de forma equilibrada.
Pois é. Você vai ter que lidar com seu racismo sim. Vai ter que mudar processos sim. Vai ter que abrir espaço de escuta e acolhimento sim. Vai ter que se calar sim. Vai ter que ceder o lugar sim. Vai ter que abrir mão sim. E acredite, dói. Eu sei.
(Veja aqui a homenagem essa semana à Escola de Jornalismo)
Depois que você entende tudo isso, percebe que está apurando melhor os fatos, compreendendo e retratando melhor a sociedade, acessando mais gente, até ganhando mais grana e relevância. E que uma cultura saudável e humana dentro das redações faz bem pras pessoas e pro jornalismo. Que passa a fazer mais sentido, ser melhor, mais fidedigno à realidade, servindo de fato à sociedade.
Por isso, nos deixa extremamente empolgadas que jornais tão importantes estejam criando seus próprios processos formativos com o objetivo de serem mais diversos (temos acompanhado de perto 10 iniciativas vivendo isso na pele no programa Diversidade nas Redações). Isso, minhas caras, é um passo em direção à mudança estrutural. E gostamos de acreditar que nosso trabalho, de alguma forma, provocou essa reflexão.
O Nexo e a Folha, lançaram, este mês, seus programas de Diversidade Racial na Comunicação e de Treinamento voltado a pessoas negras. Num modelo muito similar ao que tínhamos na EJ, no Nexo, os jovens receberão uma bolsa de R$ 500 e passarão por um processo formativo de 10 meses, em encontros que ocorrem três vezes na semana – online, por causa da pandemia.
“Além das formações técnicas de escrita, dados e ferramentas digitais, o programa vai se dedicar a fazer um resgate de história da população negra no Brasil. O objetivo é que elas saiam aptas a adentrarem outras redações, mas que não sejam evangelizadas nesse processo. Que a gente respeite e valorize o que já têm”, afirma Camila Silva, coordenadora.
O programa conta ainda com um conselho de jornalistas e colaboradores do jornal que irão apoiar na construção do percurso formativo. As aulas serão ministradas também pela equipe interna do Nexo. E parte dos encontros, que tratam de temas importantes como branquitude e viés inconsciente, serão abertas a toda redação.
“O programa demorou dois anos pra ficar pronto, primeiro porque a gente entendeu que era necessário olhar também pra dentro da redação. Era preciso repensar processos e trazer mais pessoas negras para a equipe. Depois, veio a pandemia que mudou tudo. Nosso formato passou a ser remoto e nos deu a possibilidade de abrir o programa para todo o Brasil“, conta Camila. O Nexo possui hoje 29% de pessoas negras no time.
Já na Folha, segundo Suzana Singer, editora responsável pela área de treinamento, tanto a seleção quanto o processo formativo do programa se mantêm similares às edições anteriores. Com exceção da prova de inglês, que não acontecerá. O curso dura três meses e será no período noturno, também de forma online. Não há previsão de bolsa para os participantes.
São 1940 inscritos até o momento no processo do jornal – um número alto e que anula qualquer tipo de afirmação de que não existem jornalistas e comunicadores negros no mercado.
Assim como no Nexo, a Folha está se preparando internamente para receber a turma. Alexandra de Moraes, editora de Diversidade, tem organizado workshops e palestras que trazem o tema para a pauta do dia. A editoria também já vem trabalhando para diversificar a equipe. “No ano passado, contratamos pessoas negras em metade dos processos seletivos”, afirma Alexandra.
Como começar?
Você trabalha ou é gestor em uma redação pouco diversa? Juntei essas dicas – algumas você encontra na nossa caixa de ferramentas – pra que você e sua equipe possam começar a planejar ações de formação para jovens jornalistas dentro do seu contexto.
Na Caixa, mostramos como fazer os seus jornalistas crescerem, aumentando o engajamento e satisfação da equipe; mostramos dois tipos de treinamento em diversidade que realmente funcionam; e falamos também sobre a importância da mentoria para jornalistas e grandes ideias. Lá há ainda referências de como criar uma pesquisa para diversificar a redação, como sensibilizar a chefia para a diversidade e como tornar o processo seletivo mais diverso.
1.Tempo E dinheiro
Ambos os programas recebem apoio financeiro de instituições filantrópicas. São elas Nelson Williams Group, Instituto Galo da Manhã e Fundação Tide Setubal. Começo por aqui porque, além de garantir as bolsas – que na nossa experiência são essenciais para a manutenção dos estudantes no curso –, esse recurso externo ajuda a ter uma pessoa dedicada a pensar o programa e fazer um acompanhamento. Sem isso, a redação, que já trabalha em excesso, não vai ter tempo de acolher e lidar com questões que eventualmente vão aparecer. Além de toda pré-produção e produção que um processo formativo envolve. Se sua redação é ryca, você é privilegiado sim. Então pleiteie um recurso interno pra ação, ou trabalhe a partir de um recurso disponível.
2.Mapeie sua redação e reveja seu processo seletivo
Faça um censo da sua redação e compare ele ao censo do seu município. Que perfis querem trazer para a equipe? Defina critérios específicos para os processos seletivos onde as características que está buscando pontuem tanto quanto – ou mais do que – conhecimentos técnicos em jornalismo. E cuide para que isso seja levado a sério pelos entrevistadores e quem vai contratar. Lembre-se: viés inconsciente existe.
3.Converse com a equipe
Pensar ações de treinamento e diversidade apartadas de um processo de integração é dar um tiro no pé. “A gente traz as pessoas, mas não pensa como vai ser esse acolhimento, essa inclusão. Estamos acostumados com um tipo de linguagem, uma bagagem, um jeito de fazer. Precisamos ter um olhar atento pra integrar essa diversidade”, diz Camila. Abra espaço na redação para conversar sobre incômodos, pra falar sobre branquitude, toxidade e outras coisas sensíveis. Se puder sair dessas conversas com um entendimento comum de como vocês vêem diversidade, ponto pra vocês. Isso vai nortear as próximas etapas.
4.O processo formativo
Esqueça o que aprendeu na faculdade. Pensar um percurso formativo dentro do jornalismo a partir do viés de diversidade é hoje olhar pra três coisas: habilidades técnicas e de gestão (aqui uma thread que a Luiza Bodenmuller provocou no Twitter com dicas), habilidades sócio-emocionais e história e construção da sociedade brasileira (leia-se: nossos marcadores sociais). Vale pensar também qual o perfil racial e social das pessoas que você traz para “ensinar”. Referência é tudo nessa vida 😉
5.Inserção
Massa que você está formando. Agora o próximo passo é pensar em como essas pessoas podem ter oportunidade de trabalho no mercado, caso seja do interesse delas. Pra isso, é importante que elas possam publicar coisas, criar um portfólio. Então garanta que o jornal vai se esforçar em levar essa produção pra vitrine. Depois, crie oportunidades para que esses estudantes se aproximem de outras organizações. Seja chamando editoras e editores de outros jornais para dar aula, seja marcando cafés ou criando formas de colaboração entre os veículos.
Tem muito mais na nossa caixa de ferramentas. O nosso trabalho tem sido, nos últimos anos, basicamente influenciar o campo a ser mais diverso, representativo e inclusivo. Nossas metodologias são abertas pra que sejam replicáveis. E por isso a gente sempre pede sua colaboração. Tem muito trabalho a ser feito. Se quiser contribuir, cola aqui. Seu compromisso nos ajuda a seguir em frente.
E se quiser conversar sobre o assunto, só me escrever: nina@enoisconteudo.com.br
> Errata: Na última Diversa anunciamos que Camila Silva e Kátia Brasil haviam sido ganhadoras do Concurso de Reportagem sobre COVID-19 do ICFJ. Na verdade, foi Kátia Flora a vencedora, junto de Camila.
> Alô ERRIJOTA! Brotamos! Chegamos junto da galera do data_labe e do LabJaca pra produzirmos a quinta edição do Prato Firmeza. Siiiim! Dessa vez o guia vai focar nas favelas do Jacarezinho e Manguinhos. Fica de olho no @pratofirmeza que a gente vai compartilhar tudo com vocês nas redes sociais.
> Jornalista formado pela Universidade Mogi das Cruzes (UMC), com bolsa integral do ProUni e criado em Itaquaquecetuba, em São Paulo, João de Mari foi estudante da Escola de Jornalismo em 2018. Seu trabalho esteve entre as 15 melhores reportagens sobre mobilidade urbana do país na 2º edição do Prêmio 99 de Jornalismo, oferecido pela 99 e pelo Nexo Jornal, com a reportagem “Arquitetos de quebrada” publicada no UOL TAB. A reportagem foi produzida em parceria com Sanara Santos, pela então Agência Énois. Hoje, é repórter de política e direitos humanos no Yahoo! Notícias. Pra ver mais trabalhos do João, clica aqui. Também dá pra seguir ele no Instagram e no Twitter.
> Nesse mês de março, divulgamos quem foram as novas pessoas contratadas para fazer parte da Énois. Bem-vindes novamente Alice de Souza, Danila Jesus, Carol Pires e Ivan Barbosa! Nosso time tá lindão, ó <3 Aliás, a gente também aproveitou o ensejo e contou como elaboramos esse processo de seleção, dá uma olhada aqui.
> Como falar de vacina pro seu público? Esse foi o tema da última Redação Aberta, que rendeu um passo a passo novinho na Caixa de Ferramentas. Jéssica Pires, da Redes da Maré, e Ana Ávila, do Sul21, compartilharam sobre as estratégias que têm criado para informar em seus territórios. Saiba o que rolou no evento e acesse o passo a passo aqui.
> “Nativos digitais e suas práticas nas redes sociais: análise da cobertura colaborativa ‘Especial Covid-19” é nome do artigo desenvolvido por Olga Lopes e Alessandra Ramos, da Universidade Federal de Santa Catarina. Elas analisaram o trabalho de cobertura da pandemia que realizamos no ano passado junto da Revista AzMina, da Gênero e Número e do data_labe.
> Agora a Énois também está na programação do Reload! Vamos colar com conteúdos sobre os bastidores da inserção de diversidade no jornalismo, jornalismo local e muitas notícias da galera linda do nosso programa Diversidade nas Redações. Segue o Reload no Instagram e no Tik Tok (em breve) pra conferir 😉
Um salve e muito obrigada a todes apoiadores da Énois ♥
Ana Luiza Gaspar, Amanda Rahra, Angela Klinke, Anna Penido, Bernardo de Almeida, Camila Haddad, Carolina Arantes, Claudia Weingrill, Daniela Carrete, Danielle Bidóia, Danilo Prates, Darryl Holliday, Felipe Grandin, Fernanda Miranda, Fernando Valery, Flavia Menani, Fred Di Giacomo, Frederico Bortolato, Giuliana Tatini, Guilherme Silva, Juliana Siqueira, Júnia Puglia, Larissa Brainer, Luciana Stein, Mauricio Morato, Natalia Barbosa, Nataly Simon, Rafael Wild, Renata Assumpção, Susu Jou, Tatiana Cobbett, Vanessa Adachi, Vinícius Cordeiro e Vitor Abud. Se você quer ver seu nome aqui, basta se tornar nossa apoiadora ou apoiador: benfeitoria.com/enois