Tomar de assalto a comunicação no território

Diversa

Tomar de assalto a comunicação no território

25 de Novembro de 2020

Oi gente, como estão? Aqui é a Sanara Santos, mais uma vez.

Quem não é das quebradas de São Paulo, não deve conhecer uma expressão bem geniosa que usamos: “tomar de assalto”! Uma frase que pra muitos pode estar ligada à violência, mas que pra quem é de quebrada, a expressão é ressignificada pra explicar o ato de “ocupar espaços” que não são nossos “oficialmente” ou “legalmente”. Por exemplo, o jornalismo. É isso. Aqui na quebrada, tomamos de assalto o jornalismo e o usamos como uma ferramenta de novas narrativas e impactos nos territórios.

Existem vários títulos que podemos dar para nomear coletivos e redações que cobrem os territórios periféricos: jornalismo local, periférico, comunitário, alternativo, popular, enfim… O fato é que, muito além da cobertura jornalística em si, estas iniciativas também impactam o seu entorno.

A comunicação não é passiva, mas ativa, orgânica. O jornalista não é mais aquela pessoa de fora, que chega, escreve sobre nós e vai embora. O jornalista agora está dentro das quebradas, favelas, guetos e periferias do Brasil todo, e tem muito mais relação com o tema que cobre. Por isso, se torna referência na cobertura, uma vez que tem propriedade sobre o assunto.

O que também pode diferenciar o jornalismo periférico é o CEP onde a notícia será distribuída. A leitura global e estereotipada sobre a favela é que ela ainda é um espaço de vulnerabilidade e violência. Mas o que não entra nas linhas narrativas hegemônicas, e o que mais valorizamos como comunicadores periféricos, jornalistas, é que partimos das vulnerabilidades às quais o Estado nos submete (seja pelo racismo, lgbtfobia, transfobia, ou vulnerabilidades socioeconômicas) para produzir conteúdos jornalísticos e ressignificar esta realidade imposta.

Adoro Racionais MC’s. Pra mim, em suas músicas, eles conectam, representam e valorizam a favela, o nosso jeito de ser e o nosso jeito de pensar, e ainda externalizam as tais vulnerabilidades que o Estado nos impõe. Hoje, os coletivos e redações periféricos fazem o mesmo: não é deixar de falar sobre os nossos problemas, sobre as vulnerabilidades a que somos submetidas e as suas consequências; mas é falar, registrar na história, de um ponto de vista da própria quebrada.

Uma pesquisa publicada em 2019 pela Revista Anagrama, mapeou iniciativas e veículos periféricos na cidade, apresentando em dados um pouco sobre a forma como se organizam. Nessa pesquisa, fica claro notar, como as vivências de quebrada dos comunicadores impactam no formato das redações, que são mais coletivas, e com abertura para ouvir quem tá lendo o nosso conteúdo.

Também chama a atenção a forma de captação de recursos para se manter financeiramente: crowdfunding, assinaturas, editais, lojas virtuais e serviços oferecidos, ou seja, bem distante das empresas, como a gente já falou por aqui na Diversa.

IMPACTOS DIRETOS

A repórter da Agência Tatu de Jornalismo de Dados, Géssika Costa, 27, moradora da periferia de Ponta Grossa, Maceió (AL), é uma das fundadoras do coletivo de jornalismo independente O que os olhos não veem, uma iniciativa de jornalistas de quebrada para a quebrada. “O que eu não aprendi nas redações, e que tenho aprendido No que os olhos não vêem, é o exercício da escuta”, conta ela, que é formada desde 2015. Ela também nota a diferença que é estar dentro do seu território e como mudou a forma de trabalhar, se atentando mais em ouvir, colher experiências e histórias. (Aliás, se você não viu, vale assistir as dicas que a Géssika compartilhou no último Redação Aberta, sobre como checar e compartilhar informações verificadas nesse contexto da quebrada; ou como ajudar sua avó a não compartilhar dados e notícias falsas).

Os momentos em que Géssika mais sente o impacto do coletivo no seu território são nas ligações em que recebe de alguns moradores, lideranças ou até mesmo alguém que ela conheceu pelas ruas, para indicar pautas sobre acontecimentos na comunidade. Esse impacto podemos chamar de “quebrar a quarta parede do jornalismo”, ou seja, a pauta chega até você, a comunidade se sente representada e indica também o que é de interesse dela.

“PERMITA QUE EU FALE, NÃO AS MINHAS CICATRIZES”

“Aprendi, aqui na quebrada, que eu sou um sujeito de direito e sei das minhas potências, sempre tive e terei voz”, conta Géssika. Crescendo com a ilusão de que só aparece no jornal quem é muito famoso ou quem comete algum crime, com o tempo, ela notou que essa constatação não era só dela. “Achamos que jornalismo é o “padrão [Willian] Bonner”, e quE as nossas histórias não merecem ser contadas. Mas elas merecem sim, só que pela própria voz do periférico. Existem muitas realidades nas favelas”, conta.

Pelas periferias da Zona Leste de São Paulo, Lucas Veloso, 25, jornalista da Agência Mural de Jornalismo das Periferias, que participou recentemente da formação de eleições e estratégias de distribuição da Énois, também tem a mesma percepção.

“Nós entendemos as demandas [da quebrada]”. Para ele, estar presente na quebrada é criar a consciência de que grandes veículos e suas filias não vão até à favela. “O jornalista periférico já tá lá se fazendo presente, e vamos contar as histórias sem julgamentos, tentando retratar com mais proximidade, respeito às realidades e humanidades”, diz. O Lucas escreveu, por exemplo, essa matéria aqui sobre a falta de recursos para mulheres disputarem a eleição municipal nas periferias de São Paulo, apesar da lei que determina envio de verbas públicas para essas candidaturas. E também essa aqui, sobre como crianças imigrantes e suas famílias têm passado por enormes desafios durante a pandemia.

Sanara Santos
Residente do eixo de Jornalismo Local

NO RADAR

► A Organização Pense Grande lançou uma lista com oito agências de periferia que vocês precisam conhecer.

► Um PDF da Compós sobre a identidade do jornalista periférico. Periferia: um lugar para a identidade no discurso de jornalistas.

► Viva! A Agência Mural completou 10 anos ontem, 24/11, e anunciou a expansão pra Salvador, em parceria com o grupo A Tarde.

Um salve e muito obrigada a todes apoiadores da Énois ♥

Ana Luiza Gaspar, Amanda Rahra, Angela Klinke, Anna Penido, Bernardo de Almeida, Camila Haddad, Carolina Arantes, Claudia Weingrill, Daniela Carrete, Danielle Bidóia, Danilo Prates, Darryl Holliday, Felipe Grandin, Fernanda Miranda, Fernando Valery, Flavia Menani, Fred Di Giacomo, Frederico Bortolato, Giuliana Tatini, Guilherme Silva, Juliana Siqueira, Júnia Puglia, Larissa Brainer, Luciana Stein, Mauricio Morato, Natalia Barbosa, Nataly Simon, Rafael Wild, Renata Assumpção, Susu Jou, Tatiana Cobbett, Vanessa Adachi, Vinícius Cordeiro e Vitor Abud.

FacebookInstagramInstagram