Diversa

A imprensa é parte do problema da segurança pública

30 de junho de 2021

 

Boa parte da imprensa naturaliza o aumento da violência na periferia, replicando discursos distorcidos, falaciosos e até baseados em informações insuficientes

 

Cecília Olliveira, jornalista investigativa e diretora do Instituto Fogo Cruzado

Olá, tudo bom? Eu sou Cecília Olliveira, mineira, há mais de uma década trabalhando no Rio como jornalista investigativa. A partir da minha experiência profissional cobrindo violência, notei que a transparência não é o forte da Administração Pública e a falta de dados sobre segurança é uma estratégia. Desse vácuo de informação, nasceu Fogo Cruzado, que ainda não tinha o formato atual. Também trabalhei  por anos como editora contribuinte e colunista no Intercept Brasil. Hoje escrevo para o El País Brasil e também apresento um programa no canal My News. Como vocês podem ver aqui, aqui e aqui, eu me dedico à cobertura do tráfico de drogas e de armas e à violência, muitas vezes cometidas por agentes públicos de segurança. Por causa dessa atuação, eu fui a única finalista latino-americana do Prêmio Repórteres Sem Fronteiras para a Imprensa de 2020, que celebra vozes intrépidas e corajosas na mídia global. De olho nisso tudo, a Énois me chamou para falar com vocês.

Que tal a gente começar, por exemplo, refletindo sobre como a imprensa endossa a versão estatal de casos de violência, sem questionar autoridades?  Não é surpresa alguma. Um estudo da UFRJ aponta que a reciprocidade entre a mídia comercial e o Estado é real. O levantamento fala de uma visão comum na qual o discurso desmente o mito da imparcialidade do Jornalismo, já que um ecoa a fala do outro gerando uma relação de cumplicidade. O resultado é uma imprensa que acha justificativa para a truculência policial e normaliza a escalada armamentista que vem deixando milhares de vítimas, tanto entre agentes, quanto nas periferias.

Não bastasse isso, os órgãos de segurança que ao invés de tratar as informações como públicas, as mantêm como sigilosas, dificultam ainda mais o trabalho de investigação da imprensa. Quem acompanha este tema, sabe que é quase uma tradição destes ambientes estatais reter, ocultar e bloquear dados. Soube da última novidade? A Polícia Civil do Rio decretou sigilo de cinco anos nas informações sobre operações policiais no Estado. E aí a pergunta que a gente repete é: a falta de transparência é uma tática para favorecer quem e para quê? 

A solução para contornar isso é construir iniciativas que façam o que eles não fazem e mostrem o que eles querem esconder. É assim que podemos contar as histórias, de fato oficiais, reais, como elas são. É preciso dar nomes aos “personagens” – vamos lembrar, são pessoas – que acabam sendo reduzidas só a um número. 

O Fogo Cruzado vem fazendo isso. Com independência e clareza, tornamos acessíveis dados, atualizados diariamente e em tempo real,  sobre violência armada na região metropolitana do Rio e de Recife. Dados exclusivos do Fogo Cruzado e que vão muito além desses chamados ‘oficiais’, que são na verdade, governamentais. Oficiais são os dados de muitas instituições que possuem metodologia e credibilidade na sociedade civil. 

E apesar de todos estes problemas, o que a gente percebe é que boa parte da imprensa naturaliza o aumento da violência na periferia, replicando discursos distorcidos, falaciosos e até baseados em informações insuficientes. Sem uma análise mais profunda e sem cobrar explicações ou iniciativas contundentes para a segurança pública, que realmente poupem vidas, nada muda. E a imprensa se torna parte do problema.

Tempos atrás conversei com alguns jornalistas brasileiros e estrangeiros para uma matéria sobre desinformação. Eles foram unânimes em dizer que os responsáveis pelos órgãos estatais falam se querem, o que querem, quando querem e para quem querem. Alguns, cansados de ser ignorados, contam que pegam atalhos e evitam o caminho oficial para conseguir as informações que necessitam para a redação de suas matérias. Este é mais um ponto a refletir: esta é mesmo a fonte que queremos? 

Ok, dito tudo isso, tem algo que não podemos esquecer: também pesa sobre o resultado do trabalho da imprensa a precarização da atividade jornalística. Quantos colegas de profissão vivenciaram os ‘passaralhos’?  Demissão em massa de profissionais, fechamento de jornais, falta de verba, baixa remuneração, etc. Com as equipes mais enxutas, as redações mantém jornalistas com menos ou nenhuma experiência, sobrecarregados e que acabam por reproduzir releases e notas oficiais. O tempo para apurar e investigar foi substituído pelo aumento do volume das tarefas desses profissionais, que passaram a apurar, redigir, fotografar, filmar, editar e gravar – às vezes para mais de um veículo do mesmo grupo de comunicação. É a era do clickbait, só a manchete importa. É a vez do quanto antes, melhor, do ‘depois a gente edita’.  

Mas nem a falta de experiência, nem de transparência são as únicas dificuldades neste processo para informar. É comum famílias de vítimas de violência policial criticarem o tratamento que a imprensa dá às mortes. Os parentes sofrem primeiro com a perda repentina de seus familiares e depois com a criminalização deles. Um exemplo é a mãe da jovem Kathlen Romeu, grávida de 14 semanas, que foi morta a tiros na Zona Norte do Rio no início deste mês. Ela usou todos os canais que encontrou para denunciar que a filha não era bandida, que era formada e tinha trabalho fixo. Mas este caso está longe de ser uma exceção, é na verdade uma constante nos mais diferentes registros de mortes com grande repercussão envolvendo, em maioria, trabalhadores e crianças negras das comunidades pobres. 

Em quase todos os casos, os autores não são investigados, nem responsabilizados e as histórias são encerradas e enterradas junto com as vítimas. E não é só o corpo que é sepultado, mas também a dignidade, ferida pela falta de cuidado, pelo julgamento, pelas histórias vendidas e que buscam justificar a morte de uma pessoa que você ama. Estamos longe, principalmente diante do atual momento, de ter uma perspectiva de redução desta política de morte e da violência estúpida contra as pessoas mais vulneráveis e já fragilizadas pelos efeitos da pandemia. Porém, não podemos cruzar os braços e deixar esses absurdos  acontecerem sem denunciar. E este é nosso papel: falar cada vez mais alto enquanto tivermos voz.  

Reuni aqui algumas práticas indicadas para quem quiser entender melhor o que está por trás da violência policial e fazer uma cobertura mais digna, respeitosa e de que de fato pode mudar algo:

1 – Forme o hábito de buscar mais informações produzidas por movimentos autônomos, organizações não governamentais e jornais independentes;

2 – Compare dados divulgados pelos órgãos governamentais com outras fontes;

3 –  Siga nas redes sociais lideranças comunitárias que denunciam abusos; divulgue a versão original das vítimas e testemunhas das mortes.  Muitas vezes, elas não podem se identificar porque correm risco de retaliação. Então, tenha muito cuidado com a identidade delas!

4 – Acompanhe análises propostas por núcleos acadêmicos que estudam violência em vilas e favelas ou relatórios divulgados periodicamente por plataformas como Fogo Cruzado, Geni, Rede de Observatórios de Segurança, Gajop, LabJaca, Dados de Feira, Lagom etc; Aliás, vale acompanhar a news do Fogo Cruzado, onde fazemos análises dos dados sobre violência e damos alguns insights.

5 – Cobre mais informações sobre casos de violência não esclarecidos e fique atenta ou atento às vozes que são criminalizadas por serem da periferia;

6 – Participe e acompanhe movimentos negros, de mulheres e de outras minorias que denunciam a banalização da violência em suas comunidades;

7 – Proponha e cobre mais pautas sobre o tema nas reuniões da redação

8 – Não deixe que essas vidas perdidas caiam no esquecimento. Acompanhar os casos é uma maneira de manter a pressão sobre o Estado para que a responsabilização quebre esse ciclo vicioso da violência impune.

Se quiser continuar essa conversa, siga o fogocruzado.org.br no Instagram e no Twitter, meu Instagram @Olliveira_Cecilia ou envie um e-mail pelo [email protected]

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> Como cobrir a violência policial sem desrespeitar as vítimas

> Lições sobre o uso da linguagem na cobertura de pessoas encarceradas

> Ainda dá tempo de se inscrever para participar do próximo Redação Aberta, sobre Como cobrir e fiscalizar a atividade policial. Elena Wesley, do data_labe, Inês Campelo, da Marco Zero Conteúdo, e a autora desta Diversa, Cecília Olliveira, do Fogo Cruzado, serão as convidadas para nos guiar nessa conversa. 

ÉNOIS PELO MUNDO

> Ainda dá tempo de se inscrever para as mesas do lançamento do livro “Pesquisando em Comunicação – Jornalismo, raça e gênero”, organizado por Francielle Mendes, Francisco Queirós e Wagner Silva, publicado pela Nepan Editora. Jaine Araújo, que compõe a rede Énois, contribui para a coletânea com “Um estudo sobre a cobertura da quinzena da mulher negra no site de notícias do Acre”. Você pode se inscrever no lançamento clicando aqui, e acessar o e-book aqui.

> Vale conferir a última matéria de Lucas Veloso para a Agência Mural. Lucas investigou como a Covid-19 pode ter agravado questões de saúde mental entre adolescentes. Importante a leitura!

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> Este mês nasceu oficialmente a Associação de Jornalismo Digital (Ajor). É formada por 30 organizações de jornalismo digital, entre elas a Énois, que juntas buscam fortalecer o jornalismo digital brasileiro em três eixos: profissionalização e fortalecimento das associadas, defesa do jornalismo e da democracia e promoção da diversidade.

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> E ainda tem mais: todas as reportagens poderão ser republicadas por qualquer veículo, gratuitamente. Curtiu? Se você for editora, editor, diretora ou diretor de uma redação e quiser receber as matérias para republicação, escreva para [email protected]

> O Prato Firmeza Preto foi pauta da editoria de Cultura do El País! A reportagem “Um roteiro gastronômico pelo universo do ‘black business’ de São Paulo” mostra como a gastronomia de matriz africana e liderada por pessoas negras merece ser respeitada, valorizada e olhada! A Gabriella Mesquita, analista de distribuição da Énois, que participou da produção do volume 4 do PF, conversou com a Marina Rossi.

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