01 de Abril de 2021
Não dá pra falar de diversidade sem considerá-los
Alice de Souza
Coordenadora de Sistematização
O último levantamento do Atlas da Notícia, divulgado neste ano, trouxe um alento a quem luta pela sobrevivência do jornalismo local e pelo acesso à informação. Aos poucos, estamos conseguindo hackear o sistema e reduzir os chamados desertos de notícia. A quantidade de cidades sem nenhum veículo de comunicação caiu 5,9% em relação aos dados coletados em 2019.
Para quem já viu de perto o impacto do jornalismo local, é massa saber que têm surgido cada vez mais veículos digitais, o que aumenta a chance de uma cobertura diversa e inclusiva. Mas quem trabalha com jornalismo local há muitos anos também sabe que só os números não bastam. Fazer jornalismo nos territórios, distante dos grandes centros metropolitanos, sem o mesmo prestígio e dinheiro, é vivenciar uma rotina de obstáculos, pressões e submissão a riscos, sem o amparo de uma grande corporação de mídia e sem os olhares atentos dos colegas de classe.
Lidar com a produção de notícias em cidades pequenas é, como escreveu Carlos Castilho em artigo no Observatório da Imprensa, “uma atividade de alto risco”. A proximidade com o algoz, seja ele político ou comercial, torna o exercício da profissão – naquele conceito clássico de denunciar o poder – “uma utopia”, definiu José Arantes, jornalista, sociólogo e dono da Folha da Região, a única publicação impressa da cidade de Olímpia (SP).
José Arantes trabalha há 47 anos como jornalista em Olímpia. Mantém há 42 anos o semanário impresso e também preside uma rádio comunitária, no ar desde 2013. A produção jornalística de José é feita quase dentro de casa. O jornal e a rádio funcionam no térreo do imóvel onde vive com a neta, de 8 anos, e a esposa. Ao longo da vida profissional, ele conseguiu o respeito de autoridades locais e apoio de anunciantes. Sempre soube que a única defesa, contudo, era a caneta. Até já havia sofrido ameaças há 30 anos, mas nunca da forma que aconteceu no último dia 17 de março.
Depois de uma sequência de micro ataques – ter o site derrubado, o carro perseguido e sofrer ameaças por redes sociais – José acordou de madrugada com a casa coberta por fumaça. Como contado nesta matéria do jornalista João de Mari, que passou pelas formações da Escola de Jornalismo da Énois entre 2018 e 2019, incendiaram o jornal e, em consequência, a casa do jornalista.
Que o jornalismo vem sofrendo cada vez mais ataques no Brasil, já sabemos. O ano de 2020 foi o mais violento para nós desde que a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) começou a monitorar os casos, na década de 1990. O que muitas vezes não é observado como deveria é que, nessa equação, é o jornalismo local o mais vulnerável aos ataques. Não à toa, Lourenço Veras, conhecido como Léo Veras, e Edney Menezes, os dois jornalistas assassinados no país no ano passado, atuavam em cidades com menos de 100 mil habitantes.
Em busca de respostas a quem o agrediu, José fez uma carta aberta onde exala frustração. “Fazer jornalismo em cidades pequenas não é fácil. É um sacerdócio. Ou você agrada, fala bem da sua cidade, ou vai ser odiado por todos. Sofre pressão econômica, intimidação e uma série de outras coisas”, nos contou. Para tentar sobreviver, José optou por uma vida reclusa com a família. Só não imaginava que, algum dia, o risco chegaria até a própria casa. Agora se pergunta de que adiantou se formar em direito, filosofia, sociologia e pedagogia, se não consegue proteger a neta de 8 anos nem dormir mais de uma hora por noite, sem sentir medo de ter a casa incendiada novamente.
“É o desabafo de um jornalista, advogado, professor de filosofia e sociologia, que mesmo com todo o conhecimento adquirido ao longo de seus 62 anos, se prostra inerte, se sente incompetente, impotente, descrente, sem condições mínimas de garantir os mais precários conceitos de dignidade para sua própria família”, escreveu em sua carta aberta.
A garantia de proteção aos jornalistas locais é uma questão humanitária, de luta pela liberdade de expressão e também de defesa do jornalismo diverso. Se queremos pluralidade, não adianta só inserir a palavra diversidade dentro das grandes corporações de mídia. Temos que pensar em como garantir segurança a quem não trabalha com suporte financeiro, comercial e jurídico. A quem não recebe, muitas vezes, os mesmo aplausos nem pode se dar ao luxo de fazer grandes investigações. Se você é jornalista ou gestor de redação local, deixo aqui algumas dicas de como se proteger e proteger a sua equipe. Se você topa pensar em soluções, fica aqui o meu convite.
Busque apoio jurídico gratuito. Existem alguns serviços de orientação jurídica a jornalistas em situação de ameaça. Um convênio firmado entre Abraji e OAB, por exemplo, dá orientação jurídica básica a jornalistas que se sentem ameaçados ou hostilizados virtualmente. A Artigo 19 oferece apoio jurídico discutindo estratégias, fornecendo materiais, elaborando amicus curiae, entre outros. O Comitê de Proteção aos Jornalistas (CPJ) também oferece apoio jurídico, inclusive com disponibilização de advogados.
Relate ameaças a seus editores e colegas de confiança. Certifique-se de que eles conheçam os detalhes da ameaça, incluindo como e quando ela ocorreu. Sindicatos e Federações também devem ser comunicados. Se você é gestor, avalie criar um processo de escuta para acolher os medos dos seus profissionais.
Avalie os riscos previamente. Antes de publicar uma reportagem ou ir a campo para apurá-la, é importante mapear os riscos envolvidos na produção. Liste os riscos e como você planeja reagir a eles. Isso dará subsídios para lidar com eles, se preciso for, de maneira mais eficaz. Nenhuma reportagem vale a sua vida. Se a denúncia requer amparo jurídico e institucional, busque um veículo de porte nacional para publicá-la.
Proteja seus dados online. Cada vez mais os jornalistas, sobretudo as mulheres, têm sido vítimas de ataques virtuais, que vão desde ameaças ao doxing, exposição de dados privados como documentos de identificação. Por isso, é importante reforçar senhas e proteger os acessos. O CPJ tem uma série de dicas de como fazer isso.
Considere sua saúde mental. É comum ter dificuldade ao tentar lidar com um incidente, ameaça ou ataque grave. Por isso, buscar o apoio de colegas ou aconselhamento desde o início da produção pode ajudar.
Apoie o jornalismo local. A principal forma de fortalecer a produção é apoiar o jornalismo local, garantir a sustentabilidade financeira e independência da galera. Na nossa Caixa de Ferramentas, trazemos dicas de como fazer isso.
Se quiser continuar essa conversa, me escreve no alice@enoisconteudo.com.br. Vai ser um prazer ajudar a fortalecer o jornalismo local com vocês!
> A Énois participou da Primeira Conferência Latino-americana sobre Diversidade no Jornalismo, realizada pelo Centro Knight para o Jornalismo nas Américas e organizada com o apoio do Google News Initiative. Nossa gerente de jornalismo, Jamile Santana, apresentou as métricas que criamos para medir o progresso das ações de diversidade nas redações. Você pode conferir como foi aqui.
> A Newsletter Farol Jornalismo número 318 abordou como as redações brasileiras ainda estão distantes da diversidade e mencionou a Énois como referência na área.
> Jeferson Delgado, jornalista, fotógrafo, diretor e creator, que participou da formação da Escola de Jornalismo em 2017, foi um dos entrevistadores do programa Roda Vida, da TV Cultura, transmitido na última segunda-feira (29).
> Encerramos o curso de Jornalismo e Território com a turma do Centro-Oeste. Foram oito encontros com vinte comunicadores. No nosso blog, contamos detalhes dessa formação.
> Estão abertas agora as inscrições para a última etapa do curso de Jornalismo e Território, direcionada para jornalistas do Sul e Sudeste do país (exceto das capitais de São Paulo e Rio de Janeiro). O curso é gratuito e oferece uma bolsa de R$ 250 para quem participa. Inscrições até dia 07/04.
> A Rede de Jornalistas Internacionais (IJNet, na sigla em inglês), divulgou 5 dicas para cobrir a vacinação contra a COVID-19 em veículos locais com base no nosso último Redação Aberta, que tratou do tema.
Um salve e muito obrigada a todes apoiadores da Énois ♥
Ana Luiza Gaspar, Amanda Rahra, Angela Klinke, Anna Penido, Alexandre Ribeiro, Bernardo de Almeida, Camila Haddad, Carolina Arantes, Claudia Weingrill, Daniela Carrete, Danielle Bidóia, Danilo Prates, Darryl Holliday, Felipe Grandin, Fernanda Miranda, Fernando Valery, Flavia Menani, Fred Di Giacomo, Frederico Bortolato, Giuliana Tatini, Guilherme Silva, Gilberto Vieira, Juliana Siqueira, Júnia Puglia, Larissa Brainer, Luciana Stein, Mauricio Morato, Natalia Barbosa, Nataly Simon, Rafael Wild, Renata Assumpção, Renato Feliz Okamoto, Susu Jou, Tatiana Cobbett, Vanessa Adachi, Vinícius Cordeiro e Vitor Abud. Se você quer ver seu nome aqui, basta se tornar nossa apoiadora ou apoiador: benfeitoria.com/enois