Um ano sem resposta: genocídio em Paraisópolis e impacto social
A paz é uma senhora. Que nunca olhou na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue.
Marcelino Freire
Sou Glória Maria, moradora de Paraisópolis e residente do eixo de Jornalismo Local da Énois. Tô aqui para compartilhar com vocês uma reflexão sobre a data de hoje; um dia de muita tristeza, e de urgência coletiva!
Você se recorda do que aconteceu dia 1º de dezembro de 2019? Te ajudo a lembrar: a polícia militar de São Paulo matou 9 jovens em Paraisópolis que curtiam o famoso baile funk da Dz7.
Na sexta feira, dia 29 de novembro de 2019, eu estava lá, no baile do Bega, baile da rua abaixo da Dz7. Era mais uma noite no mesmo lugar que sempre colei para encontrar meus parceiros e passar a noite compartilhando nossas filosofias de vida e nos distraindo de uma semana exaustiva.
No baile você encontra vários trabalhadores que, cansados da semana, vão lá tirar um lazer.
No sábado, dia 01/12, resolvi sair e fui passar um final de semana no mato, para me desligar de tudo (fiquei até sem sinal de celular). No domingo, às 15h, voltando para casa, liguei o celular e vi as notícias correndo pelas redes sociais. A sensação de mal estar veio na hora. Chegando em Paraisópolis, me reuni com alguns coletivos, parceiros de luta do Capão Redondo que vieram fortalecer. Estava tudo um caos. No mesmo dia a comunidade realizou uma manifestação. A revolta estava acesa, aquelas mortes nos atravessaram. Terminamos o ano de forma péssima, e com muito medo no ar.
Em março de 2020, por meio da Coalizão Negra por Direitos, eu e um dos familiares de uma das vítimas fomos para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos denunciar a violência do Estado. Chegando lá, no dia da audiência, estávamos em cinco pessoas, todas negras e periféricas, compondo a bancada da denúncia. Na nossa frente, os representantes do Estado brasileiro, a bancada branca.
Demos sequência às nossas falas. Eu estava ansiosa. Quando chegou a vez da irmã de uma das vítimas falar, eu já caí no choro. Depois, fui eu falar. Lembro fortemente o que senti. Eu os olhava com ódio, força e revolta. A resposta da bancada de brancos foi fria, insensível e institucional.
A fala deles reflete muito o posicionamento de quem gere um Estado que é genocida com a própria população. Mesmo com todas as provas, inclusive vídeos, que mostram que os policiais foram treinados e estudaram o território da viela onde aconteceu o assassinato, João Dória (PSDB), governador de São Paulo, “passou pano” para a Polícia Militar.
“A viela contém três saídas e todas foram fechadas. Em sua declaração, Dória parabeniza a segurança pública do Estado.”
Depois das mortes, vieram os sequestros de jovens em Paraisópolis. Dois jovens foram arrastados de suas casas e um foi sequestrado à luz do dia. Os enquadros violentos continuam. As ameaças de forjamento também.
Como jovem e produtora cultural do Hip Hop, expresso aqui a indignação coletiva de uma população negra e pobre cansada de ter os acessos negados, e de não poder andar em seu território quando vê a polícia porque tememos por nossas vidas.
Hoje, quando eu passo pela viela e rua do acontecido, sinto o peso dessas mortes, e a criminalização de nossas culturas, arte e nossas filosofias de vida.
Esse ciclo de violência se mantém. Quantos casos após esse já aconteceram? Inúmeras histórias! O número de pessoas mortas por policiais militares no estado de São Paulo cresceu 21% no primeiro semestre deste ano na comparação com o mesmo período de 2019, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP). Foram 435 pessoas mortas por PMs em serviço neste ano contra 358 do ano passado.
Alguns que estão nas estatísticas e outros que nem nela chegam, dada a possível subnotificação de casos. Mas, no final, tudo tem como resultado o que nós negras e periféricas sabemos desde sempre: é a manutenção do genocídio da população negra e periférica.
Não podemos deixar essas mortes caírem no esquecimento. Para o Estado, é só mais um corpo caído no chão. Querem que a gente ache normal, querem que fiquemos neutralizados. Mas nós não podemos!
É sobre nós! É sobre interromper ciclos de vida, narrativas. Toda morte tem um impacto social. Você pode achar que não tem nada a ver com você, mas todos nós temos muito a ver com esse massacre.
Deixo aqui o meu afeto e a garantia que onde quer que estejam, nós estamos batalhando por justiça em nome de Gustavo Cruz Xavier, Dennys Guilherme dos Santos Franco, Marcos Paulo Oliveira dos Santos, Denys Henrique Quirino da Silva, Luara Victoria Oliveira, Gabriel Rogério de Moraes, Eduardo da Silva, Bruno Gabriel dos Santos e Mateus dos Santos Costa. Que Xangô, nesse um ano que se completa, nos traga justiça e que nossa quebrada e nossa população venha a ter paz. Que nós façamos política para que nunca mais nossos filhos, nossos irmãos e nossa comunidade passe pelas mãos do ódio criado pela branquitude e reproduzido institucionalmente pelo Estado.
Coluna de Glória Maria, 20 anos,
produtora cultural, jornalista e
produtora na área de cinema.
Fique sabendo
UM ANO SEM RESPOSTAS: Familiares das 9 jovens vítimas do massacre de Paraisópolis realizam ato e memória e para exigir justiça
No próximo 1º de dezembro de 2020, familiares dos 9 jovens mortos em decorrência da ação policial no Baile da 17, em Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo, realizarão ato em memória de seus familiares e para reforçar as reivindicações sobre a responsabilização por essas mortes Uma ano se completou sem que as famílias tivessem respostas institucionais sobre esse crime.
Foi durante um baile funk que os jovens, em sua maioria negros, Paulo Oliveira dos Santos, 16 anos, Bruno Gabriel dos Santos, 22 anos, Eduardo Silva, 21 anos, Denys Henrique Quirino da Silva, 16 anos, Mateus dos Santos Costa, 23 anos, Gustavo Cruz Xavier, 14 anos, Gabriel Rogério de Moraes, 20 anos, Dennys Guilherme dos Santos Franco, 16 anos e Luara Victoria de Oliveira, 18 anos, foram assassinados. Segundo vídeos de moradores da região, testemunhas e reportagens, agentes da Polícia Militar empenharam o uso indevido e desproporcional da força diretamente contra pessoas desarmadas e rendidas, em um contexto de atividade cultural.
Na versão da PM, as mortes e os ferimentos em mais de 20 pessoas, se deram por pisoteamento. Os familiares dos jovens contestam e alegam que eles não resistiram às violências que foram submetidos por policiais.
A ação configura a criminalização de expressões culturais da periferia e o genocídio contra a população negra, jovem e periférica. As organizações do movimentos negro e a família das vítimas exigem a responsabilização do Estado pelas intervenções violentas, pelas mortes e pela desestruturação de nove famílias.
O ato por justiça e em memória das vítimas, será realizado no dia 01 de dezembro de 2020, às 16h30, em frente ao Portão 2 do Palácio dos Bandeirantes do Governo do Estado de São Paulo. O ato conta com apoio da Uneafro Brasil, Coalizão Negra por Direitos, Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Rede Liberdades. Se for ao ato, não esqueça da máscara e de higienizar bem as mãos, além a distância segura, sempre!