Qual a cara do jovem empreendedor brasileiro?
“Do capão pro mundo é nós por nós, vagabundo”. Essa é uma frase dita por Mano Brown na música “Você Me Deve”, do grupo Racionais Mc’s. Sempre gostei dessa frase porque me deu a noção de que posso sair da minha quebrada e ganhar o mundo.
Além de começar esse texto falando de uma das minhas frases favoritas, é importante me apresentar. Sou Jeferson Delgado, tenho 20 anos, sou cria do Jardim Rosana, um bairro que fica entre Capão Redondo e Campo Limpo, na periferia da Zona Sul de São Paulo.
Com 17 anos criei um canal no Youtube chamado Favela Business, que tem como foco falar sobre empreendedores das periferias. A ideia veio porque trampo desde pequeno: na feira, em granja avícola e até em shopping center. E desde então acompanho os rolês de quem tem pouca grana, mas sangue nos olhos. Pelo canal entrevistei desde donas de brechós até profissionais do audiovisual que eram de quebrada e criei uma websérie que leva o nome do canal.
Depois de alguns meses com o canal funcionando, passei no processo seletivo para estudar jornalismo pela Escola de Jornalismo da Énois em 2017, onde me formei. Não parece que já se passaram dois anos que comecei a estudar! Posso dizer que sou mais um jovem de periferia que demorou para ter acesso à informação e conhecer outros mundos para além da minha quebrada. Tudo na minha vida começou a mudar. De um estudante de cursinho pré-vestibular que trabalhava de vendedor de bebidas à noite, virei jornalista e fotógrafo.
Foi por todas essas pontes que fui convidado, em dezembro de 2018, pela Nestlé, para cobrir um evento que reuniu representantes de empresas, governos e jornalistas dos países do Mercosul com o objetivo de formar uma “Aliança Mercosul para os Jovens”, com foco em empreendedorismo. O evento aconteceu no Uruguai, e é aí que a frase do começo do texto começa a fazer sentido.
Sempre tive vontade de conhecer outro país, outra culinária, ter experiência com câmbio. Essas paradas que jovens de classe média costumam fazer antes de completar 18 anos. Mas dentro da minha vida não sabia como isso iria se tornar realidade.
Mas lá fui eu: #PartiuUruguai! E o que segue abaixo é um relato do que vi e vivi lá.
O que mais me chamou atenção no momento não foi apenas sair do Brasil, mas o fato de que a minha primeira viagem para fora do país não seria para lazer, e sim para trabalho. Essa questão me tocou bastante, principalmente pela profissão que eu tenho. Apesar de não ser uma profissão que exige ter diploma para trabalhar na área, ainda se trata de uma profissão muito elitista e branca. Certamente quando alguém fala sobre a profissão jornalista você já imagina um homem branco de terno e gravata.
Então um jovem negro, da periferia da Zona Sul de São Paulo, viajar para outro país para cobrir um evento é mais do que relevante. É mostrar para outros jovens que, apesar das dificuldades que enfrentamos em nosso cotidiano periférico, conseguimos ocupar outros espaços.
O evento trouxe projetos realizados pelos jovens do Mercosul que tinham como foco garantir acesso à trabalho e recursos para outros jovens. Um dos projetos apresentados foi o PICEJE (Plataforma Integrada e Conectada a Jovens e Empresas), ideia do brasileiro Marcos Silva, de 23 anos, onde grupos de universitários podem se cadastrar para apresentar soluções para problemas de empresas reais. A ideia é facilitar o contato entre as empresas interessadas e os jovens, para que esses consigam uma oportunidade de emprego, mesmo sem possuir grande experiência ou conhecimentos específicos como outras línguas.
Sendo um jovem de periferia, fui com a antena ligada para ver que tipo de jovens estariam presentes no evento. Na delegação brasileira, encontrei uma juventude homogênea, de universidades particulares e que não me representavam de diversas formas. Dos 30 brasileiros presentes (estudantes, funcionários e empreendedores sociais), apenas duas pessoas eram negras.
Uma pesquisa de 2016, realizada pela Global Entrepreneurship Monitor (GEM) em parceriacom a FGV, o Sebrae e a UFPR, registra que apenas 8,9% de pessoas declaradas pretas são empreendedoras. Enquanto para pessoas declaradas brancas o número sobe para 45,2%. Pardos são 45,1%.
A falta de representatividade presente no evento ficou evidente para jornalistas que trabalham com o tema social e que também vivem isso diariamente. Como não se incomodar participando de um evento para discutir o futuro dos jovens em que não há jovens periféricos ou negros? Dialogar sobre o futuro desses jovens é uma ação direta para a redução da mortalidade dos jovens, principalmente no Brasil (vale lembrar que em 2017 a Agência da ONU apontou que o país é o sétimo que mais mata jovens no mundo por conta da violência).
Fiz essa pergunta à Nestle, empresa que nos convidou para cobrir o encontro. E eles disseram que: “a escolha dos jovens aconteceu por meio de uma seleção em várias frentes, desde colaboradores que participaram de iniciativas dentro da companhia, passando por jovens de universidades e projetos parceiros, além de empreendedores sociais que têm alguma conexão com a Nestlé. Como uma empresa global e multicultural, a Nestlé está comprometida em promover a inclusão de todas as comunidades em seus negócios e atividades. Por isso, a companhia tem justamente buscado ampliar ações e iniciativas que promovam esse tema, nos diferentes países que atua, respeitando as especificidades e necessidades de cada local. No Brasil, isso se reflete em busca de ampliação da diversidade não só em nossa equipe de colaboradores, mas também nos públicos e comunidades com os quais nos relacionamos e em parcerias. Estes são passos importantes, mas sabemos que ainda há mais a fazer. Continuaremos a estender e incorporar diversidade e inclusão em todos os aspectos da empresa nos próximos anos.”
Assim como eu, muitos jovens trabalham desde pequenos. Porém, sempre em empregos informais ou com menos chances de crescer. Não nos ver representados em encontros como esses é uma constante afirmação de que existe um abismo entre as oportunidades de empreender para o jovem de periferia.
Mas fiquei feliz de conhecer Luis Coelho, morador do Jardim São Luís, e Jennifer Rodrigues, do Parque Regina, ao lado do Capão Redondo. Eles criaram juntos o “Empreende Aí”, uma escola de negócios que trabalha com empreendedorismo visando o impacto social nas periferias. O projeto foi fundado em 2015 com o objetivo de formar e capacitar prioritariamente novos nanos, micros e pequenos empreendedores(as) de territórios populares, comunidades e favelas através do curso Despertando o Empreendedor, que acontece presencialmente e online.
Saí do evento com a impressão de que precisamos brigar mais por representatividade em espaços como esses: o do empreendedor. Os negros no Brasil representam 54% da população e movimentam, em renda própria, R$ 1,7 trilhão por ano (pesquisa de 2018 do Instituto Locomotiva). O estudo levantou ainda que 29% dos negros trabalham no seu próprio negócio, totalizando 14 milhões de empreendedores – uma movimentação de, aproximadamente, R$ 359 bilhões em renda própria por ano.
Ou seja, se representamos tanto a economia, por que não somos nós os casos compartilhados com o resto do Mercosul? Enquanto a resposta não vem, a gente faz o corre. Aqui “é nós por nós”.
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Confira a cobertura feita durante a viagem nos destaques dos Stories do Instagram da Énois.